Livro O Arlequim da Paulicéia será lanado hoje em Salvador



Viaje de bonde com Mário de Andrade

Este passeio poético pelo centro velho de Sampa lembra, grosso modo, o filme Meia noite em Paris, em que Woody Allen promove o encontro do protagonista com grandes escritores e pintores da belle époque. Só que o encontro é “apenas” com Mário de Andrade, que vale por muitos.
Em O arlequim da Pauliceia, Aleilton Fonseca destaca o amor de Mário de Andrade por São Paulo, ao mesmo tempo em que descobre novos sentidos em sua obra, mesclando excertos dela e fotografias das primeiras décadas do século 20. O resultado primoroso nos conduz a uma viagem nostálgica e poética.
Sensorialmente, o leitor terá o prazer de andar de bonde, molhar-se na São Paulo da garoa, iluminar-se à luz dos lampiões a gás, acompanhar a construção do Teatro Municipal, da Catedral da Sé, do Edifício Martinelli, ver simples transeuntes de terno, gravata e chapéu no centro velho da cidade, mulheres vestidas à la française, à sombra dos primeiros arranha-céus, ouvindo os ruídos dos primeiros automóveis importados e o burburinho cada vez mais rumoroso de uma Pauliceia que engatava marchas em direção a uma loucura que se desenhava e se redesenha até hoje.
Se você nunca leu Mário de Andrade esta obra vai despertar o seu desejo. E se já leu vai ter uma nova leitura, uma redescoberta. Aleilton se coloca elegante e humildemente em segundo plano para elevar Mário de Andrade à altura que ele merece. Os dois se merecem e se incorporam na busca de compartilhar o sentimento e a poesia com os seus semelhantes.
“Ao tematizar a cidade de São Paulo, Mário de Andrade produz, sobretudo, uma poética do olhar. A atitude de contemplação da paisagem urbana é um dos traços mais fortes de toda a sua obra”, destaca o autor. Segundo ele, o modernista pregava uma poesia que exprimisse os sentimentos unânimes do homem diante da agitada vida urbana. Exprimir a cidade em versos significava, para o poeta, domá-la, pô-la nas rédeas da linguagem, de novo humanizá-la, tornando-a inteligível, transparente ao sentimento humano, explica Fonseca.
O leitor está em ótima companhia. Desacelere e volte ao início do século passado. Depois volte devagarinho, para não se assustar com a cidade atual diante de si. Mário de Andrade já previa esta explosão e este caos, pero sin perder la ternura 

Sobre o autor

Aleilton Fonseca (1959) escreve ficção, poesia e ensaios. Publicou, em poesia: Movimento de Sondagem (1981), O espelho da consciência (1984); Teoria particular (mas nem tanto) do poema(1994), As formas do barro & outros poemas (2006) e Une rivière dans les yeux/Um rio nos olhos(edição bilíngue, 2012); em ensaio: Enredo romântico, música ao fundo (1996) e Guimarães Rosa, écrivain brésilien centenaire (Bélgica, 2008); em conto: Jaú dos Bois e outros contos (1997), O desterro dos mortos (2001, 2010, 2012), O canto de Alvorada (2003, 2004), Les marques du feu et autres nouvelles de Bahia (França, 2008), A mulher dos sonhos & outras histórias de humor (2010, ), As marcas da cidade (2012); publicou dois romances: Nhô Guimarães (2006), O pêndulo de Euclides (2009), e a novela Memorial dos corpos sutis (2012); além disso organizou Melhores poemas de Sosígenes Costa (2012) e co-organizou As formas informes do desejo (2010) e Jorge Amado nos terreiros da ficção (ensaios, 2012). É Licenciado em Letras (UFBA, 1982), tem mestrado pela UFPB (1992), e Doutorado pela Universidade de São Paulo (1997). É professor titular pleno de Literatura Brasileira, na Universidade Estadual de Feira de Santana-Bahia. Coeditou Iararana – Revista de arte, crítica e literatura (Salvador), e coedita Légua e Meia – Revista de Literatura e Diversidade Cultural (UEFS). É membro da Academia de Letras da Bahia, do PEN Clube do Brasil e da UBE/SP. É correspondente da revista francesa Latitudes: cahiers lusophones. Em 2012, representou o Brasil, como poeta convidado, no 28e. Festival International de la Poésie, no Quebec/Canadá. O ensaio deste livro é uma parte de sua tese de doutorado, que foi defendida na Universidade de São Paulo, com a orientação de Zenir Campos Reis.

Entrevista com o autor

1. Quando começou a escrever? Qual foi o seu primeiro livro publicado?Comecei a escrever poesia e ficção aos 17 anos, quando ainda morava em Ilhéus, cidade da Gabriela de Jorge Amado. Publicava nos jornais de Ilhéus e de Salvador. Em 1981, já em Salvador, lancei meu primeiro livro de poesia. Resolvi fazer o curso Letras, a fim de me tornar professor de literatura e tentar construir a carreira de escritor. Deu certo. Fiz graduação na UFBA, mestrado na UFPB e concluí o doutorado na Universidade de São Paulo em 1997, com uma tese sobre Mário de Andrade. Sou professor universitário há 28 anos. Tornei-me escritor, tenho cerca de 20 livros já publicados, em poesia, conto, romance e ensaio.
2. O que te motivou a escrever o Arlequim da Pauliceia? Quanto tempo levou para escrever o livro?
O que me motivou a escrever o livro foi o meu espanto e o meu encantamento com a cidade de São Paulo. Visitei a cidade, pela primeira vez, em outubro de 1992. Fiquei chocado. Morei em São Paulo de março de 1993 a dezembro de 1995. Foi uma experiência extraordinária. Eu cheguei com um projeto de estudo, sobre música e ficção, mas mudei. Resolvi estudar as imagens de São Paulo na poesia de Mário de Andrade. Escrevi a tese em três anos. Defendi e deixei na gaveta. Anos mais tarde, resolvi extrair da tese a parte em que faço um ensaio interpretativo da poesia de Mário, destacando as imagens que ele traduz da cidade de seu tempo, de Pauliceia desvairada (1922) a Lira paulistana(1945). Uma viagem surpreendente através da cidade amada pelo poeta.
3. De onde vem o amor por São Paulo? Quando começou a pesquisar sobre a cidade?
Comecei a pesquisar sobre a cidade em 1993, quando iniciei o projeto da tese/ livro. O meu amor e a minha admiração por São Paulo eu os adquiri de duas maneiras:  a primeira, pelo choque, ao me deparar com a metrópole em 1993, vivendo nela suas misérias e grandezas durante 3 anos;  a segunda, foi através da poesia de Mário de Andrade. São Paulo é pura comoção, na poesia de Mário e em meu olhar de espanto. Sempre volto a São Paulo e me admiro com sua grandeza. Essa cidade imensa me comove, me anula como indivíduo, e me eleva como ser; me esmaga com sua engrenagem e me orgulha com sua magnitude. Amedronta-me e me encanta.
4. Qual foi a sua impressão da cidade em relação à relatada no seu livro?Morei na Vila Sônia, na Rua Heitor dos Prazeres, durante 3 anos, de 1993 a 1995. Assisti às mudanças políticas da época, no início do plano real, à escalada da violência, a constante expansão urbana. Enfrentei uma enchente do Tietê/Pinheiros, fui assaltado, tive a casa arrombada e furtada. Também vi espetáculos maravilhosos de arte, teatro e literatura, exposições incríveis de artes, visitei os museus, vivi intensamente o clima da USP, fiz passeios, conheci gente de expressão e ideias. Como diz Mário, num poema da Lira paulistana: “tudo se passou em São Paulo!”.  Sempre me impressionou a constante transformação visual da cidade. Eu lia isso em Mário e fazia comparações. Por exemplo, comparava o que via no atual Vale do Anhangabaú com as fotos do passado, e me perguntava: como foi possível transformar aquele local idílico num deserto de cimento e asfalto? Na lógica da cidade tudo é possível. Faz 5 anos voltei à Rua Heitor dos Prazeres, e me espantei com o novo quadro. O lado direito da rua desapareceu completamente: casas, jardins, quintais, marcas…  para dar lugar ao muro da garagem do metrô, em Vila Sônia. Várias famílias que ali moravam, e com as quais eu e meus filhos fizemos amizade e tivemos convivência…nem vestígio deles nem de suas casas. Eu revia a rua original em minha memória. Uma sensação incrível. Eis a metrópole viva, revolvendo as próprias entranhas, recompondo seu tecido, seu corpo, seu espírito. As pessoas são apenas detalhes.
5. Por que escolheu esse título para o livro?O título do livro é uma descoberta recente. Ao resolver publicar o ensaio, descobri que o título devia ser centrado na figura de Mário de Andrade, a partir da condição que ele assume como cantor, trovador e domador da cidade. O arlequim é uma alegoria da condição que o poeta Mário de Andrade assume para representar – no palco da poesia – a sua cidade amada. Sua poesia é um drama, um canto doído de amor a São Paulo.
6. De que forma São Paulo influenciou a poesia de Mário de Andrade, na sua opinião? Total e visceralmente. Mário dizia que era um poeta paulistano, e não paulista nem brasileiro, tal era sua devoção lírica à cidade. Ele a considerava sua “noiva”, e sua poesia era o filho dessa união problemática. Toda a sua obra poética atravessa a cidade, desde Pauliceia desvairada até Lira paulistana, desde o poema inicial, no qual a cidade e sua “Inspiração”, até o canto de despedida “A meditação sobre o Tietê”. É uma relação completa, singular, sofrida e admirável.
7. Esse livro propõe uma longa e deliciosa viagem pela São Paulo do início do século passado em companhia de Mário de Andrade e de fragmentos de sua poesia. O que o leitor irá encontrar nessa viagem ao túnel do tempo?O leitor poderá passear com os olhos por ruas, cruzamentos, esquinas e praças através de várias fotos antigas que trazem de volta as imagens que a memória coletiva já perdeu. E o leitor trilhará por passagens cruciais de uma poesia de amor a São Paulo, uma espécie de roteiro sentimental de uma cidade em marcha para se transformar na metrópole de hoje, com suas grandezas e misérias. O poeta Mário de Andrade tem uma visão amorosa, mas também muito crítica acerca da cidade. Ao final, vivido e experiente, ele abandona a comoção de louvor à São Paulo e tenta corrigir os seus rumos, mas ninguém o escuta, pois estão todos surdos com a marcha voraz da máquina urbana. O poeta, conclui seu canto de despedida, ”A meditação”, entregando-se simbolicamente às águas escuras do rio Tietê. E morre alguns dias depois, em 25 de fevereiro de 1945.

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