O renascimento da África nas Américas

Publicado na Ciranda

Rede de Comunicação Compartilhada do Fórum Social Mundial


Palestra da professora Zélia Amador uma das fundadoras do CEDENPA – Centro de estudos e defesa do Negro do Pará, participou em Dakar da 3ª FESMAN numa mesa redonda que travava de Diáspora e renascimento africano.

Símbolo: Anan Ntontan, por Adinkra

Para falar da diáspora africana nas Américas, utilizarei a metáfora de ananse, a aranha que foi capaz de tecer uma grande teia e conseguir o baú de historias das mãos de Kwame e permitir que tivéssemos histórias. Ananse, a deusa, acompanhou seus filhos espalhados pelo mundo. O mito de Ananse originário da cultura dos povos Fanthi- Ashanti, da região do Benin, na África Ocidental, se espalhou e se renovou e se renova em diversos lugares das Américas. Ananse, suas teias e suas histórias acompanhou seus filhos na afro-diáspora. Os africanos que atravessaram para as Américas, na condição de escravos, foram destituídos de tudo, inclusive de sua humanidade ao serem transformados em mercadorias, “coisificados”. Neles, o colonizador imprimiu o código dos europeus e deles se apossou, na condição de proprietário, senhor.

Contudo, os africanos que cruzaram os oceanos não foram sozinhos. Levaram suas divindades, visões do mundo, alteridades – lingüística, artística, étnica, religiosa; diferentes formas de organização social e diferentes modos de simbolização do real. Entre as divindades que os acompanhou veio Ananse. Como sabemos a afro-diáspora no continente americano decorre do processo do colonialismo europeu e, em particular, do tráfico transatlântico e do sistema de escravidão.

Entretanto, uma vez instalados em quaisquer dos continentes, por mais que as tradições fossem represadas ou aniquiladas, pela cultura hegemônica, os descendentes de africanos davam inicio a um processo de criação, invenção e re-criação, da memória cultural para preservação dos laços mínimos de identidade, cooperação e solidariedade. Nesta rede de interação, as múltiplas culturas africanas que se espalharam pelo mundo, preservaram marcas visíveis dos traços africanos. Marcas que exerceram importância fundamental para que esses africanos e seus descendentes realizassem sua reconstrução pessoal e coletiva.

Dentre as inúmeras marcas de africanismos, destaco nesta breve comunicação o papel do corpo como marca identitaria. Nesse processo de fusões e ressignificações, o corpo dos africanos e seus descendentes sempre teve uma importância muito grande, tanto para ser negado quanto afirmado. Se você quer afirmar sua negritude, o corpo está presente, reafirmando. Se você quer negar, é este mesmo corpo que você tenta subverter e fazer com que se aproxime ao padrão branco. Por isso, do ponto de vista de colocar o corpo com essa importância significativa, os corpos dos africanos da afro-diáspora têm sempre que ser lidos no campo da performance, sobretudo no campo da performance ritualística, com tudo o que o ritual traz consigo de recortes da memória trazida pelos africanos. O corpo negro carrega consigo a história de muitos povos. No corpo de cada um de nós, onde quer que estejamos, existem muitas histórias nele gravada, que pode ser tanto uma história de negação, quanto uma historia de luta de resistência, o que nos incumbe de uma grande responsabilidade, porque não é só a nossa história individual que estamos construindo.

Frantz Fanon assinala que ao refletir sobre seu corpo percebeu que ele continha um esquema corporal, propriamente dito, continha também um esquema histórico racial. Contudo, para a elaboração desse esquema, tomou por empréstimo tudo aquilo que o outro, o branco, havia construído para ele: “mil detalhes, anedotas, contos.[...] lendas, histórias, a história e, sobretudo, a historicidade”. Fanon refere que se descobre com o corpo marcado, quando apontado por uma criança branca:

“mamãe um negro, tenho medo! Medo! Medo! Começavam a ter medo de mim”. Naquele momento, Fanon percebe que o seu corpo não é mais apenas o seu corpo. Era o “esquema corporal, atingido em vários pontos”. O seu corpo em três pessoas. Era ao mesmo tempo responsável pelo seu corpo, pela sua raça e pelos seus ancestrais. “eu existia em triplo: ocupava muito espaço ”

O corpo, portanto, na perspectiva apontada por Frantz Fanon, há que ser entendido como instrumento portador de estruturas significantes e de estruturas de significados e seu gesto-signo deverá ser lido de acordo com o âmbito social, no qual se instaura. Dito de outra forma, muito da estrutura de significantes e da estrutura de significados do corpo negro, foi atribuído pelo branco.

A antropologia já foi capaz de mostrar que o corpo é afetado pela religião, pelo grupo familiar, pelas classes sociais e, enfim, afetado por todos intervenientes sociais e culturais. É assim que o corpo vai sendo moldado por tudo o que o cerca, em seu entorno. A sociedade projeta nele a fisionomia do seu próprio espírito, pois como comenta Jorge Glusberg: “corpo é uma matéria moldada pelo mundo externo, pelos padrões sociais e culturais, e não a fonte, a origem de seus comportamentos” . O corpo não está apenas lançado no espaço contextual, ele interage, interferindo e sendo interferido pelo contexto. É dessa forma que ele se constitui enquanto corpo. Desse ponto de vista, o corpo é social e individual. Uma espécie de composto que vive em equilíbrio dinâmico entre estas duas forças. E, é exatamente pelo fato de o corpo ser individual e social, ele é capaz de expressar, metaforicamente, princípios estruturais da vida coletiva.

No que tange `performance, seja qual for o campo de estudo, ela, a performance não consegue se desvincular de sua origem que tem como centro o corpo em completa interação do eu, individuo com o coletivo, o social. Melhor dizendo, no contexto da performance, o corpo social e individual, expressa metaforicamente os princípios estruturais da vida coletiva. O corpo possui memória, possui mistérios. Ao mesmo tempo em que desnuda, cobre. Através do corpo o ser pode ser visto, avaliado, julgado.

Desse modo, performances afirmam identidades e contam histórias, feitas de comportamentos duplamente exercidos. Ou seja, são ações que as pessoas podem treinar para desempenhar e que, também, podem repetir e ensaiar. Este seria o conceito de comportamento restaurado.

O fato das performances dos africanos escravizados haverem sido construídas de pedaços, fragmentos de comportamentos restaurados, irá fazer com que cada uma delas seja singular, na medida em que estes comportamentos podem ser recombinados em infinitas variações e em diferentes contextos. Quero dizer com isso que a “África” que chega ao continente americano não é um todo homogêneo, mas um pedaço daquele continente marcado pela heterogeneidade de culturas e etnias. Na perspectiva do corpo negro, há que se ir a busca da chave da interpretação simbólica, estamos na iminência de perder a semântica e a sintaxe do que pode ser um sofisticado sistema de comunicação. Estamos numa encruzilhada. Que Exu nos mostre o caminho. Caso contrário, corremos o sério risco de perder não apenas o significante, mas a reprodução continua de uma memória social reprimida. A liberdade dos corpos em movimento. A dança, a música, partes de uma singularidade de origem africana, renegada pelo peso da cultura ocidental. Restaram fragmentos desse discurso, nos resta buscar a chave. Paul Gilroy , já adverte: A política da diáspora negra sempre envolveu a dança, performance e a apresentação do corpo como ferramenta de expressão. Isso aconteceu porque os negros foram deixados de fora da esfera fundada na palavra. Por esse motivo, romperam a barreira com o discurso do corpo. Foram capazes de, com o corpo, criar uma nova dimensão significativa que funde ética e estética, representada na performance ritual. Nesta linha, o movimento libertário e agressivo de Exu, vai “abrindo os caminhos”, forjando passagem, “abrindo alas”. O corpo africano em movimento. Os herdeiros de Ananse, a deusa Aranã em ação.

No processo da diáspora aqueles homens e mulheres que atravessaram o oceano, desamparados, viram rompidos os laços de linhagens que os agregava como etnias e para não sucumbir tiveram que elaborar diversas estratégias de sobrevivência. São homens e mulheres que, apesar de todos os entraves que lhes foram impostos, mantiveram força e inteligência suficientes para conhecer, compreender e adaptarem-se às terras que lhes eram estranhas. E, para tanto, não contaram com outros recursos, senão seus corpos, suas mãos, suas habilidades com o que foram capazes de criar e improvisar. Entretanto, esses homens e mulheres contaram, sobretudo, com suas memórias vivas procedentes da África.. E porque não dizer, estes africanos, nessa tentativa de recuperação de si, contaram com a preciosa ajuda de Ananse. Os africanos da diáspora auxiliados pelo poder desta divindade serão dotados de consciência de unidade e solidariedade.

Digo, portanto, que a utilização do corpo e da cultura como instrumentos de resistência exercerão papel importante no processo de construção de identidades dos africanos em condição de subalternidade. O que pretendo é que o corpo do africano e o corpo de seus descendentes, para o bem ou para o mal, sempre vêm à cena, se põem e se expõem, transforma-se em texto no discurso que enuncia e anuncia. Em suma, um corpo que fala. Em outras palavras, é este corpo que, estigmatizado pelo racismo, será a marca da discriminação, exposto aos castigos e aos trabalhos forçados e a toda forma de exploração. Por outro lado, este mesmo corpo virá a ser instrumento de afirmação de identidades, no embate com os opressores num processo de tomada de consciência e, também, é este mesmo corpo que poderá ser objeto de repulsa, num processo de autonegação. Ao falar do binômio, auto-afirmação e autonegação, estou me referindo às gramáticas corporais construídas, a partir da inter-relação com o outro, em circunstâncias de tensão. O corpo que se auto-afirma é o corpo que agride o corpo padrão dominante em todos os aspectos, desde o campo estético, até ao campo político, propriamente dito. É um corpo capaz de subverter o corpo padrão dominante. Por seu turno, o corpo que se auto-nega é o corpo que busca se expressar por meio de uma gramática corporal subsumida que tenta se aproximar do corpo padrão dominante. Neste particular, cito no primeiro caso, o Rastafarismo e o Black is Beautiful; e no segundo, talvez o mais extremo conhecido por todos, é o do astro pop Michael Jackson. Aqui, lembro do desabafo de Frantz Fanon.

Desse modo, cada um dos os fios/ações tecidos por Ananse funda uma rede de resistência capaz de garantir, não somente a sobrevivência dos africanos escravizados e mais tarde de seus descendentes, mas, para além da simples sobrevivência desprovida de tudo, uma sobrevivência fortalecida por um repositório cultural criado nas Américas. É nessa perspectiva, que a Ananse estará presente nos diversos lugares das Américas, unindo e reunindo os fios/ações, construindo redes de solidariedade, que irão fortalecer o personagem protagonista desta ação, a fim de que ele possa alcançar seus objetivos. Portanto, as histórias do povo negro, nas Américas, se inscrevem em narrativas que incluem migrações e travessias, onde a vivência do sagrado, de um modo particular, constitui-se num índice de resistência cultural e de sobrevivência étnica, política e social.

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