Cena e vida




Relato de um fim de semana na terra do cinema

“Não é documentário nem ficção. É a cena e a vida. Como ativar esse espaço que se borra?”, disse Gabriel Mascaro, diretor do longa metragem Brasília formosa. “Adoro essa serra”, eu repeti várias vezes ao chegar em Tiradentes. Eu conheço bem esse lugar, mas não consigo disfarçar o êxtase de chegar na cidade feita para o cinema. Cercada pela serra, com suas casinhas e ruas estreitas, a Mostra de Tiradentes parece ter encontrado o lugar perfeito, a cidade cenográfica que é cena e vida ao mesmo tempo. Lá esses espaços se borram, a imagem da tela se mistura ao cotidiano alterado pela chegada do cinema.

Ao invés de procurar lugar para ficar, no sábado dia 22, fomos correndo para o seminário das 11hs, mesmo sem saber direito do que se tratava. Na mesa o ator homenageado pela Mostra Irandhir Santos, o jornalista Xico Sá e os cineastas, Claudionor Assis, Eric Lourence e Kleber Mendonça. Hora da rasgação de seda, como eles mesmo disseram, ao ator que sabe bem explorar o corpo como sua melhor ferramenta. Mais do que isso: “A voz como ferramenta para o corpo e para a alma”, ele conta da experiência em que atuou sem sua principal arma: o corpo. Nesse trabalho, ele usou a voz para expressar movimento e sentimento.

Os cineastas comentam da experiência de trabalhar com Irandhir, ator que entra em transe no set com a consciência sempre ligada. “Transe não é palavra certa” talvez seja o mugango. No palavreado pernambucano, o termo remete a algo que não se explica direito, ao movimento inusitado. E foi assim mesmo que Claudionor comenta o teste que fez com o ator: “Faz o seu Mugango aí”. Já Kleber diz ter feito de tudo para não trabalhar com Jurandhir, isso por que ele não gosta da mise-en-scéne típica de quem estudou a arte de encenar. Mas Jurandhir usa da técnica e da precisão sem perder o encantamento, lida com o pragmatismo do set sem perder a emoção. Aí o cineasta conhecido por trabalhar apenas com não atores, não pode evitar, teve em Jurandhir a emoção e a pureza de quem vê a câmera pela primeira vez com o rigor e consciência de quem explora a linguagem do corpo e da alma.

Linguagem que se transforma também com a transformação do corpo. A diretora Cláudia Priscilla teve como inspiração sua própria gravidez para adentrar ao universo das mães em situação limite. No filme Leite e Ferro, mães encarceradas cuidam dos filhos e esperam os quatro meses em que serão devolvidos para a família. A sensibilidade dessas mulheres transgressoras assusta assim como o amor com a prole e a angústia pela chegada do dia em que serão obrigadas a entregar seus filhos. Talvez a diretora tenha se deixado seduzir pelo discurso enfático da personagem principal e a sua construção para a tela. Fica a sensação de que a realidade é capturada mais pela interpretação e que a ficção se materializa em conversas ensaiadas. Mas na relação entre observador e observado é sempre possível se deixar levar pelo discurso e pelos arquétipos.


Relação essa que Gabriel Mascaro, diretor de Avenida Brasília Formosa tornou complexa. Filmando com os ouvidos ele capturou a sensação ou a suspensão de pessoas em seus não lugares. “O meu filme é um esboço, um filme a ser feito, uma suspensão”, ele reflete. No filme, fica marcado o deslocamento estético e geográfico dos personagens que foram obrigados a se mudar de Brasília Teimosa para uma região construída pelo governo. Um projeto político que coloca a periferia de Recife no centro da cidade e que mudou o nome de militância de Brasília Teimosa para Brasília Formosa. Na tela a experiência dos personagens que parecem não se apropriar dessa nova realidade. Assim como a mudança foi brusca, os cortes e narrativa do filme estão longe de seguir uma cadência lógica. Bruscamente a garota que quer ir para o big brother dá lugar para o pescador e sua vida privada.

Tudo isso é tratado no filme muito além de uma questão política. Para o diretor, a idéia é tomar a voz sem fazer com que a narrativa seja um estandarte de militância por uma causa concreta. Pelo contrário, o filme se configura como uma tentativa de trazer à tona a potência da vida sobre o espaço urbano. Trazer a geografia da desconstrução, da movimentação e apropriação das pessoas por um novo lugar. A sensação de ser lançado em outros espaços, que, na maioria das vezes, são transformados abruptamente por um projeto político.

Comentários

Muito legal seu relato Pam! Poste sempre...esse canal é seu tb. Um abraço.
Valeu Brenda! Estarei sempre por aqui.
Parabéns Pâmilla, vou querer assistir ao filme depois de tua resenha.

Um abraço carinhoso.

Carmen Silvia Presotto