A democracia em que vivemos
"Além dos mecanismos formais como o direito ao voto, é preciso avançar para a discussão do conteúdo da política, garantindo a participação popular"
Ricardo Gebrim
O QUE É DEMOCRACIA?
Enquanto se comemorava o fim da ditadura militar e o surgimento da chamada Nova República, em 1985, Florestan Fernandes nos deixava um importante alerta: “Para os humildes, a instauração da democracia vem a ser uma revolução política. Não se trata de um movimento burguês, 'conservador' ou 'radical', que possa ser realizado por dentro da ordem, por meio do Estado e de cima para baixo. Trata-se de algo contra o que o movimento burguês tem lutado tenazmente, do Estado Novo à 'democracia populista' e à República institucional. O polo burguês repele a plebeização da ordem existente porque ela surge como revolução democrática, põe o país diante da única forma política de democracia compatível com as chocantes realidades da sociedade brasileira. Em consequência, cabe ao polo plebeu – subproletário, proletário e em parte pequeno burguês – soldar novas alianças de classes que nos afastem definitivamente dos pactos de conteúdo e implicações elitistas. A história atual lhe pertence, pois ele é a única garantia com que contamos de que a revolução democrática está em marcha”.
Neste pequeno trecho, Florestan nos relembra importantes lições e advertências de seu legado teórico. A primeira é compreender que “liberdades democráticas” não se confundem com o regime democrático formal burguês. Não se questiona que a democracia burguesa representou um avanço em relação ao antigo regime feudal. Tampouco que ela é o resultado de séculos de lutas e conflitos sociais protagonizados pela classe trabalhadora. Todavia, as origens são diversas. O regime democrático representativo liberal tem paternidade burguesa e, quando muito, uma remota ancestralidade aristocrática na defesa que a fidalguia fez de seus direitos contra o absolutismo real, e é muito anterior à consolidação das liberdades democráticas. As classes proprietárias resistiram enquanto puderam, por décadas e décadas, ao reconhecimento dos direitos eleitorais para os não proprietários. Até mesmo o direito de voto só foi reconhecido pelas potências europeias a conta-gotas.
Sem dúvida que o sufrágio universal é, efetivamente, uma conquista democrática. Porém uma conquista permanentemente ameaçada, que se deu à custa de intensas e prolongadas lutas sociais e nunca por opção da classe dominante. A democracia, porém, não pode ser reduzida ao sufrágio. Um regime político não pode ser compreendido apenas pela presença ou somatória de mecanismos democráticos tais como sufrágio universal, liberdade partidária, divisão de poderes. Os mecanismos são apenas um meio para regular os conflitos sociais e políticos de uma sociedade. A compreensão de um regime político exige atentar para seu conteúdo.
Quais são os interesses sociais que um regime representa? Embora na forma os mecanismos sejam “democráticos”, no conteúdo existem somente para manter em pé a estrutura de classes, a exploração econômica, a exclusão social, os privilégios da elite, a concentração do capital e o controle do poder econômico, se possível com a desão sem revoltas ou, pelo menos, com a apatia dos pobres e explorados.
A conclusão é clara. Não há democracia plena sob o capitalismo, uma vez que as decisões que dizem respeito à própria existência da maioria da população – os trabalhadores – estão fora do alcance de sua intervenção, que permance totalmente controlada pela propriedade privada. Eis porque o preço da resolução da contradição entre capitalismo e democracia tem sido a degradação de nossas aspirações democráticas a mínimo absoluto.
Interesses e Conflitos
O segundo ensinamento de Florestan é que que as classes proprietárias somente podem conviver com uma democracia formal, na qual as margens de decisão política são estreitas e podem ser exercidas somente se não afetarem as bases determinantes da política e economia. E sob a forma de dominação por meio das democracias formais, as classes dominantes apostam em um Estado que exerça o papel de cooptação, marginalização, atomização, contenção e fracionamento dos processos de organização da luta popular, reservando a criminalização e a repressão aos setores que não aceitam suas regras.
É certo que para os trabalhadores e s organizações populares a existência de uma democracia , ainda que formal, representa melhores condições para a luta econômica e política. Mas qualquer tentativa de questionar decisões estratégicas envolvendo investimentos que contrariem interesses dos grandes grupos econômicos não pode ser efetivada, tornando a disputa “democrática” e as estruturas do poder estatal (Executivo, Legislativo e Judiciário) apenas um espaço para resolução de contradições da classe dominante e de manipulação e controle das classes populares.
Grandes corporações financeiras, representantes de rentistas, credores da dívida pública, controlam diretamente duas instituições-chave: o Ministério da Fazenda e o Banco Central. A partir dessas posições, definem as políticas monetária, cambial e fiscal, e comandam a execução do Orçamento da União, subordinando a ação de todo o Estado nacional. Por sua vez, poderosos grupos econômicos e oligárquicos apresentam-se no jogo político por meio, principalemente, das bancadas formadas no Congresso Nacional – as bancadas do agronegócio, da construção civil, das escolas privadas etc. - e, a partir delas, negociam seus interesses com o Executivo. Nesse contexto, não se pode esperar do Congresso Nacional nenhuma reforma política que ultrapasse mudanças meramente cosméticas.
A terceira e mais importante lição de Florestan pode ser resumida na frase: “Para os humildes, a instauração da democracia vem a ser uma revolução política”. É nesse sentido que a luta pelo aprofundamento da democracia é uma das principais bandeiras das forças populares e dos movimentos sociais. E também por esse motivo, ao pautar o tema da reforma política, somos obrigados a nos colocar uma questão prévia. O que é democracia para a maioria do povo brasileiro?
Ricardo Gebrim, advogado em São Paulo, integrante da Coordenação Nacional da Consulta Popular e da AssembleiaPopular, articulação que congrega movimentos sociaisurbanos e rurais.
Este artigo foi publicado no Caderno Pensar Brasil do Jornal Estado de Minas, no dia 10 de abril de 2010 e enviado por Leonardo de Magalhaens do OPA
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