Especial: A história do Carnaval Carioca - PARTE 1





Por Fernando Moura Peixoto
(ABI 0952-C)


O CARNAVAL CARIOCA EM SEUS 181 ANOS  por Fernando Moura Peixoto

“O carnaval é a única festa nacional que consola a gente do calor, da queda do mil-réis, da política, dos programas de salvação pública e dos desastres de aviação militar.” RIBEIRO COUTO (1898 – 1963)

A palavra carnaval vem do latim ‘carnem levãre’ (“abstenção da carne”), “primitivamente designativo da terça-feira gorda, tempo a partir do qual a Igreja suprime (em latim ‘levare’) o uso da carne”, que originaria ‘carne levare’, ‘carne-levale’ e, finalmente, ‘carnevale’ em italiano. Embora aceitável foneticamente, mestre Antenor Nascentes (1886 – 1972) descarta ‘carrus navalis’ (“carro naval”, carreta no formato de um barco, que abria algumas festas romanas populares) como outra possível etimologia do vocábulo.

Do ponto de vista folclórico e etnográfico”, afirmou o escritor e folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), “o carnaval é um índice anual de sobrevivências e elementos reais de psicologia coletiva, adiantamento ou atraso educacional, não falando nas revelações que a psicanálise permite verificar em massa. Música, indumentária, elevação ou pobreza espiritual são trazidos ao alcance do estudo e da observação durante as setenta horas carnavalescas”.


OS PRIMEIROS BAILES NO RIO DE JANEIRO
É certo que um baile à fantasia, no melhor estilo europeu, tenha ocorrido no Rio de Janeiro em 1824 ou 1825, no Teatro Real de São Pedro de Alcântara (local onde fica o atual Teatro João Caetano), com a presença de D. Pedro I (1798 – 1834). E que um fato pitoresco nele se passara. A muito jovem e travessa Estela Sezefredo  (1810 – 1874), de apenas 14 ou 15 anos - que se casaria posteriormente com o notável ator João Caetano dos Santos (1808 – 1863) -, acertara um limão de cheiro bem no rosto do imperador, sendo presa por isso.
Mas o registro oficial de um evento desta espécie entre nós data de 1835. Era um sábado, 7 de fevereiro, quando se realizou o ‘Baile dos Mascarados’, no pequeno Hotel de Itália, na Rua Espírito Santo (hoje Rua Pedro II), no Largo do Rossio, a presente Praça Tiradentes.
No primeiro baile carnavalesco do Rio de Janeiro, os ingressos, individuais, custavam dois mil réis. A iniciativa desta festa partira dos proprietários do hotel, procurando imitar os grandes bailes de máscaras europeus. As máscaras, em cera, veludo ou cetim, de finíssimo acabamento, tinham sido introduzidas aqui um ano antes, por influência francesa.
Em virtude do sucesso obtido, dois outros bailes de máscaras aconteceram em 1840 (em 22 de janeiro e 20 de fevereiro) no mesmo hotel, mencionando-se agora a palavra Carnaval.
Criada em 1845, a Sociedade Constante Polca fez um baile à fantasia no Hotel de Itália em 1846, só para sócios. Também em 1846, na noite de sábado, 21 de fevereiro, a meio-soprano Clara Delmastro Eckerlyn (s/d) – que viera para o Brasil em 1844, com a Companhia de Giuseppe Galatti (1806 – 1900), representar ‘Joan Seymour’ na ópera ‘Anna Bolena’, de Donizzetti (1797 – 1848) – promoveu um memorável baile de carnaval no Teatro de São Januário, na Rua do Cotovelo, com entrada paga. Nos anos seguintes, a moda dos carnavais dançantes se propagou, principalmente na década de 1870.
Luxuosos e cada vez mais animados, sucederam-se os bailes nas casas de espetáculos. E até o fim do século, estenderam-se aos cafés-concerto, clubes de dança, grêmios recreativos, parques públicos, rinques de patinação, circos e casas de família. As músicas executadas iam desde aberturas de óperas, valsas, quadrilhas, polcas e mazurcas, passando por ‘cake-walk’, ‘schottisch’ e tango, até o lundu, maxixe e, posteriormente, o ‘charleston’.

O ENTRUDO LUSITANO

Trazido de Portugal, antes só havia o entrudo, que em nada lembrava o carnaval europeu. Do latim ‘introitu’ (que significa “entrada, introdução – são os três dias que precedem a entrada da Quaresma”), o entrudo era uma verdadeira passeata, alegre e muito violenta, que acontecia nas ruas e do alto dos sobrados.  Galhofeiramente, nos outros se jogava água pura, água destilada, limões de cheiro, vinho, vinagre e groselha. Além de talco, farinha de trigo, fuligem, cal, alvaiade, pós de sapato, vermelhão e goma.
Utilizavam-se baldes, bacias, canecos, cabacinhas, seringas de flandres, laranjas e limões de cheiro, borracha ou celuloide e as bisnagas, predecessoras do lança-perfume metálico, que apareceu em1885. Atirava-se também água suja, ovos podres, talos de hortaliça, piche e pó-de-mico – valia tudo para sacanear o próximo! A ‘molhação’ provocava gripes e até mesmo pneumonia.
A sujeira e a pancadaria decorrentes do entrudo obrigavam os comerciantes a fecharem as portas de lojas e armazéns. Embora humilhante e brutal, a brincadeira empolgava a maioria dos escravos, os senhores, e a nobreza, sendo proibida por lei desde o início do século 17 e combatida pela imprensa. No decorrer dos tempos foram vários e inúteis os avisos, editais e portarias contra o entrudo. Em 1904 não houve entrudo, que ressuscitaria em 1905 e 1907, desaparecendo lentamente a partir de 1910.

O CARNAVAL DE RUA
O carnaval de rua propriamente dito dar-se-ia a partir de 1846, com o surgimento da figura popular do ‘Zé Pereira’, vivido pelo sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes (s/d), estabelecido no número 22 da Rua São José.
Numa segunda-feira de carnaval, o ‘Zé Pereira’ saiu à rua com um grupo de oito folgazões lusitanos, a cantar, berrar e bater o bumbo pelo centro da cidade. De acordo com a cronista Eneida de Moraes (1898 – 1971), o ‘Zé Pereira’ “foi traduzido em brasileiro e tomou conta da cidade: virou cidadão carioca”.
Inspirado na canção francesa ‘Les Pompiers de Nanterre’, de Antonin Louis (1845 – 1915), o refrão do ‘Zé Pereira’ apregoava: “E viva o Zé Pereira / Que a ninguém faz mal / E viva a bebedeira / Nos dias de Carnaval: / Viva o Zé Pereira / Viva, viva, viva!”.

Os foliões percorriam então as ruas, fantasiados ou mascarados, marcados em ritmos diversos por tambores e zabumbas, gritando, fazendo gracejos e zombarias. Outros entoavam cantigas de roda. Dançava-se o jongo, coreografia mística e sensual, de origem africana, trazida de Angola pelos negros bantos, percutida por três atabaques: tambu, candongueiro e caxambu. Antecessor do samba, o jongo persiste em nossos dias.

AS PRIMEIRAS SOCIEDADES

Fundada em 1854, a primeira sociedade carnavalesca, chamada ‘Congresso das Sumidades Carnavalescas’, iniciou o desfile dos préstitos em 1855, com a participação dos romancistas Manuel Antônio Almeida (1831 – 1861) e José de Alencar (1829 – 1877). E tinha na plateia a família imperial.
Uma banda marcial, vestida com o uniforme dos cossacos ucranianos, vinha abrindo o cortejo. Puxado por belos cavalos, um dos carros levava uma alegoria de Dom Quixote, que portava a bandeira da agremiação. Ao redor, mandarins, nobres, dançarinas, ciganos, odaliscas e personagens históricas em uma autêntica procissão. E moças que lançavam beijos aos populares e lhes arremessavam saquinhos de balas.
Despontariam outras sociedades: ‘União Veneziana’, ‘Zuavos Carnavalescos’ e ‘Euterpe Comercial Tenentes do Diabo’ (1855). Posteriormente, ‘Democráticos’ (1867), ‘Fenianos’ (1869), ‘Infantes do Diabo’ e ‘Congresso dos Fenianos’. E algumas de curta duração, como ‘Estudantes de Heidelberg’, ‘Acadêmicos de Joannisberg’, ‘Clube X’, ‘Boêmia’, ‘Clube dos Socialistas’ e ‘Novo Clube X’.
Pela afrancesada e estreita Rua do Ouvidor – então a mais notável do comércio e do mundanismo cariocas – desfilavam os principais préstitos, que seguiam depois pela Rua do Teatro, Largo de São Francisco e Praça da Constituição.
Egresso da Folia de Reis, em 1873, um rancho natalino saiu pela primeira vez no período do Carnaval. Em 1877 apareceram os pufes, desafios compostos em versos, entre as sociedades carnavalescas. Nomes ilustres como Olavo Bilac (1865 – 1918) - Fenianos -, Emílio de Menezes (1866 – 1918), Atílio Milano (1897 – 1955), Aloísio Neiva (s/d) e Calixto Cordeiro (1877 – 1957) fizeram pufes.

O DESENVOLVIMENTO DO CARNAVAL
Os blocos e os cordões começaram a se formar nas décadas de 1880 e 1890.  E os ranchos carnavalescos, depois de 1892, com instrumentos de percussão, sopro e cordas, tocando melodias em ritmo lento. Em 1897, o bairro de Madureira e outros subúrbios distantes do Centro, organizam seu próprio carnaval.
Em 1899 é composta por Chiquinha Gonzaga (1847 – 1935), pianista, maestrina e iconoclasta, a primeira música essencialmente carnavalesca – a marcha-rancho ’Ô Abre-Alas’, feita para o cordão ‘Rosa de Ouro’. Em 1900, ocorreria o primeiro baile de carnaval em Copacabana, considerada insalubre e um imenso areal.  As músicas carnavalescas já refletiam e satirizavam os fatos sociais e políticos da época.
Na Praça Onze, na casa da baiana Hilária Batista de Almeida (1854 – 1924), a famosa Tia Ciata ‘mãe de santo’ e ‘partideira’ que trouxe o ‘samba de roda’ para o Rio de Janeiro em 1876 –, reuniam-se malandros e compositores para saraus musicais fartamente regados a acepipes. Essa hospitalidade festiva contribuía para o desenvolvimento deles na cidade.

O CORSO NA AVENIDA CENTRAL

Em 1906, com a abertura da Avenida Central (mais tarde Av. Rio Branco), os folguedos para lá se deslocam. O jornal ‘Gazeta de Notícias’ lança o primeiro concurso de cordões. Em 1907, surge o legendário ‘Ameno Resedá’, “o rancho que foi escola”. E ainda, inspirado em um desfile no carro presidencial, em 1º de fevereiro, por toda a Avenida Central, das filhas do Dr. Afonso Pena (1847 – 1909), inicia-se a moda do corso: automóveis e caminhões abertos, enfeitados e apinhados de foliões fantasiados, que brincavam entre si e com os passantes das ruas e calçadas.
Uma curtição! Realizavam batalhas de confete e serpentinas, duelos de lança-perfume, e atiravam pequenas balas envoltas em papel crepom, os ‘jetons’. Em filas indianas, os veículos transitavam em marcha reduzida, saindo geralmente da Praça Mauá, atravessando a Avenida Central e estendendo-se pela Avenida Beira-Mar até o antigo Pavilhão Mourisco, na Praia de Botafogo.

O HIGH LIFE E O MUNICIPAL
Em 1908 deixava-se de lado a Rua do Ouvidor. Era inaugurado neste ano o célebre ‘High Life’, na Rua Santo Amaro, no Catete. Um casarão de dois andares, com amplos salões e varandas, no qual se promoviam quatro grandes e animadíssimos bailes, exclusivamente no Carnaval – eram festas de arromba! Em 1909, o ’High Life’ instituiu o primeiro baile premiando fantasias e folionas mais bonitas.
Em 1911, a Avenida Central recebe iluminação elétrica. Pula-se o carnaval por toda parte. Um dos locais mais badalados era a saudosa Galeria Cruzeiro, no Hotel Avenida (atual Edifício Avenida Central). Em Vila Isabel tornaram-se famosas as batalhas de confetes da Rua Dona Zulmira e do Bulevar Vinte e Oito de setembro.
Em 1916, arrendado a um particular, o restaurante Assyrio, no Teatro Municipal (inaugurado em 1909), deu seis bailes noturnos de carnaval, em 19 e 26 de fevereiro, e em 4, 11, 18 e 19 de março, com entradas a dez mil réis por pessoa, vestindo traje a rigor ou fantasia mascarada.

AS PRIMEIRAS GRAVAÇÕES EM DISCO

Em janeiro de 1917, grava-se o histórico ‘Pelo Telefone’, de Donga (1890 – 1974) e Mauro de Almeida (1882 – 1956), inicialmente com a Banda Odeon e, logo, na voz de Baiano (1870 – 1944) e coro. Sucesso nacional, ele é considerado formalmente o primeiro samba registrado em disco no Brasil. Porém o musicólogo Roberto Moura (1947 – 2005) garante que dois outros sambas já haviam sido gravados antes pela mesma Casa Edison: ‘Em Casa da Baiana’, em 1913, e ‘A Vila Está Magoada’, em 1914.
Mais oito músicas caracteristicamente carnavalescas e o samba iria virar modismo, penetrando na sociedade de consumo, notadamente a partir de 1923, quando o advento da radiodifusão no país ensejou o surgimento de uma nova geração de cantores e compositores populares.


























Comentários

Iara Abreu disse…
Ótima matéria. Sempre bom conhecer as histórias vivenciadas e contadas.

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