Voto e conjuntura no Brasil em 2014: consórcio petucano?
Por Nilvo Ouriques para o Correio da Cidadania*
Desde Buenos Aires, Atílio Borón faz um chamado a seus amigos e companheiros no Brasil e os convoca a assumir o voto em Dilma Rousseff nas eleições de domingo. Estou entre os amigos de Atílio, com quem tenho antiga colaboração e amizade, razão pela qual me animo a responder sua valiosa reflexão. A Europa pode ser nosso espelho?
Creio desnecessária a valorização de Atílio sobre a conjuntura europeia, especialmente aquela relativa a Alemanha dos anos 30. A razão é simples: ainda que para efeito de ilustração é sempre útil pintar toda escolha como se estivéssemos realmente inseridos na lógica de uma situação extrema, a conjuntura brasileira em nada se assemelha com a época prévia à ascensão do nazismo e o contexto da grande crise de 1929. Nem mesmo o mais pessimista analista poderia afirmar que estamos próximos daquela situação. No entanto, tem sido recorrente recordar o conflito entre os comunistas e a socialdemocracia europeia, como se o cenário europeu da década de 30 do século passado fosse um espelho adequado para observar nossas escolhas presentes.
De minha parte, creio que nos últimos anos o uso de expressões como “fascista” ou “nazista” foi completamente vulgarizado entre nós. Há dois dias Lula afirmou que a discriminação sobre os nordestinos era expressão do “nazismo”. Nada mais impreciso e falso. "De vez em quando parece que estão agredindo a gente como os nazistas na Segunda Guerra Mundial", disse Lula, em Recife. Ora, a comparação é completamente descabida! A discriminação contra os nordestinos é expressão do tradicional – nem por isso menos odioso! – racismo que constitui um pilar do desenvolvimento capitalista no Brasil. O mesmo racismo destilado cotidianamente contra a maior parte da população negra e os povos originários. Contudo, ainda estamos muito longe de uma onda nazi no Brasil. Comparação não somente indevida feita pelo ex-presidente, mas, sobretudo falsa, que termina por despolitizar a questão racial entre nós. Avanço conservador não é fascismo, mas nosso debate é sobre a conjuntura atual.
Vamos ao ponto central da caracterização de Atílio sobre a situação brasileira; ele afirma que seria “um gesto de imprudência que a esquerda não perceba o crescente processo de fascistização de amplos setores das camadas médias e o clima macartista que satura diversos ambientes sociais”. De fato, seria grave erro subestimar o potencial fascista existente na sociedade brasileira. Também seria uma conduta irresponsável ignorar que eventual vitória de Aécio poderia até mesmo fortalecer esta tendência na ação do governo e em certas decisões do Estado. No entanto, creio necessário afirmar que numa democracia restringida como a que sofremos, num país capitalista dependente e subdesenvolvido como de fato somos, sempre será muito importante reconhecer como parte do jogo liberal a emergência de forças identificadas com o fascismo, o racismo e, desde nossa singularidade, com a ditadura militar (1964-1985). Mas é preciso insistir no fato de que a emergência desta tendência é minoritária no país e impossível eliminá-la. Enfim, é parte constitutiva da democracia liberal a presença de forças de direita mais ou menos afinadas com práticas fascistas ou com o discurso fascista (nos termos da perspectiva eurocêntrica tradicional: Le Pen na França é uma forma declaradamente fascista e Berlusconi também, mas nem por isso alguém poderia afirmar que a Itália e a França estão ameaçadas pelo fascismo).
Não devemos desconhecer a diferença histórica qualitativa entre Dilma e Aécio. Fazê-lo seria ignorar a importância da História, pois enquanto Dilma lutou bravamente contra a ditadura, amargou prisão e tortura, Aécio nunca passou de um bon vivant que foi logo cedo adotado pela classe dominante para servir aos seus interesses. Ademais, Aécio é discípulo devoto de FHC (algo que não ocorria com Serra nas hostes do PSDB) no estilo do discurso, na adoção da estratégia política, na identidade com os interesses imperialistas, especialmente com o Partido Democrata nos Estados Unidos. Aécio mesmo não é fascista, mas é claro que, na condição de político vulgar que de fato é, poderia – caso estivéssemos numa situação extrema – assumir um programa desta natureza.
Neste contexto, é claro que precisamente em função dos antecedentes históricos, muita gente desejou ou esperava que Dilma assumiria claros compromissos com o povo, da mesma forma que muitos de nós ainda não aceitamos a renúncia da presidente pela elucidação completa e definitiva dos crimes cometidos pela ditadura, menos compreensível quando ela própria foi vítima daquelas atrocidades, para dar apenas um exemplo entre muitos possíveis. Contudo, se é um erro eliminar as diferenças entre os candidatos no passado, é também grave erro ignorá-los no presente. Há, tal como indica Atílio Borón, um constante avanço conservador na sociedade brasileira e se trata de um movimento que não é necessariamente contra o PT e Dilma; ao contrário, é possível afirmar categoricamente que parte considerável do conservadorismo crescente no país é um ingrediente da própria estratégia do PT e das alianças realizadas pela candidatura de Dilma. A propósito, o resultado do processo eleitoral é claro: a bancada parlamentar identificada com os trabalhadores e com os sindicalistas reduziu sua representação de 83 para 47 deputados! É o pior resultado desde 2002, quando Lula se elegeu para presidente.
Do lado oposto, a bancada que integra a Frente Parlamentar da Agroindústria conta com 253 assinaturas, praticamente a metade do congresso nacional. Enfim, é fácil perceber que importantes parlamentares afinados com interesses ultraconservadores sustentam o governo Dilma, entre os quais merece destaque a senadora Kátia Abreu, ex-presidente da poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Apoiou Dilma e recebeu apoio da presidente para eleger-se senadora por seu estado, Tocantins. Não é, obviamente, o único exemplo, mas ninguém poderá desprezar este dado na análise da situação concreta brasileira: ilustres representantes do pensamento conservador e mesmo reacionário estão com Dilma (José Sarney, Collor de Melo etc.).
A miséria do ecologismo e a digestão moral da pobreza
Atílio nos pergunta a razão pela qual Aécio adotou sem titubeios a agenda ecológica e social proposta por Marina? Não creio que se trata apenas de “manobra propagandista” – ainda que também tenha algo disso – mas substancialmente porque o ecologismo brasileiro jamais enfrentou a relação perversa entre homem-natureza sob as condições do capitalismo dependente.
O ecologismo dominante aqui sempre foi funcional à ordem burguesa! A opção de Marina (ex-ministra de Lula) e outros conhecidos ambientalistas pela candidatura de Aécio revela antes de tudo a pobreza e a miséria do ecologismo como corrente política no país e, ao mesmo tempo, a capacidade destes políticos em aceitar os crimes ecológicos produzidos pela modalidade de desenvolvimentismo em curso, certamente ainda mais agressivo na eventualidade de um governo tucano.
Não devemos jamais esquecer que Marina foi especialista na defesa do “desenvolvimento sustentável”, o caminho simpático para a acumulação de capital que destrói violentamente a natureza com algum charme para os ambientalistas franceses e as organizações não governamentais (ONGs). Por que, afinal, Aécio adotou os programas sociais defendidos por Dilma e exigidos por Marina? Porque além de baratos – consomem um percentual muito pequeno do orçamento federal – é decisivo para estes setores aprofundar a digestão moral da pobreza em curso no Brasil.
Ora, o tucano Aécio jamais ousou afirmar durante toda a campanha que a “ascensão” de milhões de brasileiros à condição de classe média está limitada àqueles trabalhadores que recebem entre R$ 641 e R$ 1019 reais, quando o salário mínimo calculado pelo DIEESE deveria ser R$ 3.019 reais! Tampouco ousa contestar que os 100% de royalties para educação e saúde, peça da campanha oficial, não alcançam sequer 2% de toda a riqueza extraída do Pré-sal. Estes dois exemplos são importantes para observar como na prática estamos governados por um “consórcio petucano”, no qual as divergências ou são alimentadas no terreno confortável do parlamento ou quando tocam em temas estratégicos, são simplesmente ocultadas pelos dois grandes partidos.
A reforma política: decisivo passo do avanço conservador
Finalmente, algo sobre nosso sistema político. A precoce adesão do PT à ordem burguesa não cancelou apenas longos anos de trabalho e esforço político da esquerda para dotar as classes subalternas de um instrumento de luta. Na exata medida em que o PT se transformou em um partido da ordem, o sistema político perdeu sua capacidade de figurar como caminho de transformação para os interesses das maiorias. Em consequência, o sistema político é democrático e adequado para a dominação classista, mas é incapaz de mudar as regras do jogo em favor de outra correlação de forças, mais favorável ao combate dos "de baixo".
Eis a razão fundamental pela qual a burguesia descarta, nas atuais circunstâncias, qualquer estratégia golpista e pode – como o fez até agora – governar com Dilma. Uma alternativa golpista de corte fascista somente se transforma numa necessidades histórica diante do avanço das classes subalternas, da elevação de seu grau de consciência e organização, capaz de tocar na propriedade, no poder político e no privilégio das classes dominantes.
Ora, precisamente Dilma comanda o pacto de classe herdado de 1994 – o Plano Real – com mais maestria que FHC ou Aécio. Afinal, a burguesia pode ou não contar com uma forma de dominação democrática na periferia capitalista? Eu estou de acordo que eventual vitória de Aécio representa a restauração conservadora que Atílio indica. É verdade. Mas é igualmente verdadeiro que a “restauração conservadora” não se assemelha a qualquer onda fascista!
Aécio deixou claro que teria “tolerância zero” com a inflação. Ataca, desde o espectro da direita, o “neodesenvolvimentismo atravessado por profundas contradições” do PT e de Dilma. Caso eleito, Aécio praticaria a política da ortodoxia neoliberal que já enfrentamos durante os 8 anos de FHC. Algo muito distinto de uma onda fascista. E Dilma continuará, caso eleita, com a política atual que até mesmo alguns keynesianos consideram de escassa inspiração neodesenvolvimentista. Enfim, os interesses das distintas frações do capital estão inteiramente contemplados no atual governo, com a vantagem de que os pobres pouco "incomodam", em função da política social.
O que leva muitos de nós ao voto nulo? Algo decisivo. Nos últimos 12 anos, em nenhuma oportunidade Lula ou Dilma convocaram o povo para alguma batalha. Qualquer batalha. Dilma nos convoca tão somente para o voto. Jamais para a luta! Agora, flertam com uma "reforma política" que se transformará numa plataforma do conservadorismo ascendente comandada pela presidente reeleita. Poderá emergir uma reforma progressista de um congresso cada dia mais conservador? Nenhuma possibilidade! Será, sem dúvida, um simulacro de reforma, destinado a afastar ainda mais o povo das decisões estratégicas e dotar os grandes partidos de imunidade, diante de eventual pressão popular. Neste contexto, é completamente falso supor que Dilma poderia reconectar o PT com os movimentos sociais ou reativar antigo compromisso com os condenados da terra no Brasil. Depois de cada vitória, os presidentes eleitos pelo PT centram sua atenção no Congresso Nacional, na prática parlamentar e, de costas para o povo, governam em santa comunhão com as classes dominantes. No limite, indicam para a esquerda marginal e para os movimentos sociais, que “ruim conosco, pior sem nós”. Com a operação, garantem recursos suculentos para as classes dominantes enquanto destinam migalhas para as classes subalternas. Devo dizer com clareza: os programas sociais atualmente praticados são importantes para um país atravessado pela desigualdade, mas é igualmente verdadeiro que também são úteis para a estabilidade burguesa porque são baratos, mantêm os pobres na pobreza e não avançam em sua organização política e consciência de classe!
A opção pelo voto nulo de milhares de militantes socialistas não supõe que o caminho de reconstrução da esquerda radical seria mais fácil numa eventual vitória de Aécio. Tampouco será melhor com a reeleição de Dilma. A esquerda socialista sai desta eleição acumulando grande derrota eleitoral. Mas creio que aprendeu – ou deveria aprender – que figurar como "espírito crítico" do petismo atual, como se sua função histórica se limitasse a concluir um trabalho que o PT abandonou no meio do caminho, é um horizonte limitado diante dos dilemas históricos do país. Tampouco cabe à esquerda servir como espécie de "terceira via" entre os dois principais partidos dominantes. Trata-se de um dilema superado historicamente. A esquerda necessita afirmar-se contra a agenda do petucanismo no terreno parlamentar (a "reforma política"), na elaboração de nova práxis nas organizações sociais – especialmente os sindicatos – e de uma certeza elementar: o sistema político no qual ela figura, agora como nanica ou marginal, não poderá transformar a vida da maioria da população brasileira e muito menos operar no sentido de superar as misérias típicas do subdesenvolvimento e da dependência.
*Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e membro do Núcleo de Estudos Latino-Americanos.
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania
Desde Buenos Aires, Atílio Borón faz um chamado a seus amigos e companheiros no Brasil e os convoca a assumir o voto em Dilma Rousseff nas eleições de domingo. Estou entre os amigos de Atílio, com quem tenho antiga colaboração e amizade, razão pela qual me animo a responder sua valiosa reflexão. A Europa pode ser nosso espelho?
Creio desnecessária a valorização de Atílio sobre a conjuntura europeia, especialmente aquela relativa a Alemanha dos anos 30. A razão é simples: ainda que para efeito de ilustração é sempre útil pintar toda escolha como se estivéssemos realmente inseridos na lógica de uma situação extrema, a conjuntura brasileira em nada se assemelha com a época prévia à ascensão do nazismo e o contexto da grande crise de 1929. Nem mesmo o mais pessimista analista poderia afirmar que estamos próximos daquela situação. No entanto, tem sido recorrente recordar o conflito entre os comunistas e a socialdemocracia europeia, como se o cenário europeu da década de 30 do século passado fosse um espelho adequado para observar nossas escolhas presentes.
De minha parte, creio que nos últimos anos o uso de expressões como “fascista” ou “nazista” foi completamente vulgarizado entre nós. Há dois dias Lula afirmou que a discriminação sobre os nordestinos era expressão do “nazismo”. Nada mais impreciso e falso. "De vez em quando parece que estão agredindo a gente como os nazistas na Segunda Guerra Mundial", disse Lula, em Recife. Ora, a comparação é completamente descabida! A discriminação contra os nordestinos é expressão do tradicional – nem por isso menos odioso! – racismo que constitui um pilar do desenvolvimento capitalista no Brasil. O mesmo racismo destilado cotidianamente contra a maior parte da população negra e os povos originários. Contudo, ainda estamos muito longe de uma onda nazi no Brasil. Comparação não somente indevida feita pelo ex-presidente, mas, sobretudo falsa, que termina por despolitizar a questão racial entre nós. Avanço conservador não é fascismo, mas nosso debate é sobre a conjuntura atual.
Vamos ao ponto central da caracterização de Atílio sobre a situação brasileira; ele afirma que seria “um gesto de imprudência que a esquerda não perceba o crescente processo de fascistização de amplos setores das camadas médias e o clima macartista que satura diversos ambientes sociais”. De fato, seria grave erro subestimar o potencial fascista existente na sociedade brasileira. Também seria uma conduta irresponsável ignorar que eventual vitória de Aécio poderia até mesmo fortalecer esta tendência na ação do governo e em certas decisões do Estado. No entanto, creio necessário afirmar que numa democracia restringida como a que sofremos, num país capitalista dependente e subdesenvolvido como de fato somos, sempre será muito importante reconhecer como parte do jogo liberal a emergência de forças identificadas com o fascismo, o racismo e, desde nossa singularidade, com a ditadura militar (1964-1985). Mas é preciso insistir no fato de que a emergência desta tendência é minoritária no país e impossível eliminá-la. Enfim, é parte constitutiva da democracia liberal a presença de forças de direita mais ou menos afinadas com práticas fascistas ou com o discurso fascista (nos termos da perspectiva eurocêntrica tradicional: Le Pen na França é uma forma declaradamente fascista e Berlusconi também, mas nem por isso alguém poderia afirmar que a Itália e a França estão ameaçadas pelo fascismo).
Não devemos desconhecer a diferença histórica qualitativa entre Dilma e Aécio. Fazê-lo seria ignorar a importância da História, pois enquanto Dilma lutou bravamente contra a ditadura, amargou prisão e tortura, Aécio nunca passou de um bon vivant que foi logo cedo adotado pela classe dominante para servir aos seus interesses. Ademais, Aécio é discípulo devoto de FHC (algo que não ocorria com Serra nas hostes do PSDB) no estilo do discurso, na adoção da estratégia política, na identidade com os interesses imperialistas, especialmente com o Partido Democrata nos Estados Unidos. Aécio mesmo não é fascista, mas é claro que, na condição de político vulgar que de fato é, poderia – caso estivéssemos numa situação extrema – assumir um programa desta natureza.
Neste contexto, é claro que precisamente em função dos antecedentes históricos, muita gente desejou ou esperava que Dilma assumiria claros compromissos com o povo, da mesma forma que muitos de nós ainda não aceitamos a renúncia da presidente pela elucidação completa e definitiva dos crimes cometidos pela ditadura, menos compreensível quando ela própria foi vítima daquelas atrocidades, para dar apenas um exemplo entre muitos possíveis. Contudo, se é um erro eliminar as diferenças entre os candidatos no passado, é também grave erro ignorá-los no presente. Há, tal como indica Atílio Borón, um constante avanço conservador na sociedade brasileira e se trata de um movimento que não é necessariamente contra o PT e Dilma; ao contrário, é possível afirmar categoricamente que parte considerável do conservadorismo crescente no país é um ingrediente da própria estratégia do PT e das alianças realizadas pela candidatura de Dilma. A propósito, o resultado do processo eleitoral é claro: a bancada parlamentar identificada com os trabalhadores e com os sindicalistas reduziu sua representação de 83 para 47 deputados! É o pior resultado desde 2002, quando Lula se elegeu para presidente.
Do lado oposto, a bancada que integra a Frente Parlamentar da Agroindústria conta com 253 assinaturas, praticamente a metade do congresso nacional. Enfim, é fácil perceber que importantes parlamentares afinados com interesses ultraconservadores sustentam o governo Dilma, entre os quais merece destaque a senadora Kátia Abreu, ex-presidente da poderosa Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Apoiou Dilma e recebeu apoio da presidente para eleger-se senadora por seu estado, Tocantins. Não é, obviamente, o único exemplo, mas ninguém poderá desprezar este dado na análise da situação concreta brasileira: ilustres representantes do pensamento conservador e mesmo reacionário estão com Dilma (José Sarney, Collor de Melo etc.).
A miséria do ecologismo e a digestão moral da pobreza
Atílio nos pergunta a razão pela qual Aécio adotou sem titubeios a agenda ecológica e social proposta por Marina? Não creio que se trata apenas de “manobra propagandista” – ainda que também tenha algo disso – mas substancialmente porque o ecologismo brasileiro jamais enfrentou a relação perversa entre homem-natureza sob as condições do capitalismo dependente.
O ecologismo dominante aqui sempre foi funcional à ordem burguesa! A opção de Marina (ex-ministra de Lula) e outros conhecidos ambientalistas pela candidatura de Aécio revela antes de tudo a pobreza e a miséria do ecologismo como corrente política no país e, ao mesmo tempo, a capacidade destes políticos em aceitar os crimes ecológicos produzidos pela modalidade de desenvolvimentismo em curso, certamente ainda mais agressivo na eventualidade de um governo tucano.
Não devemos jamais esquecer que Marina foi especialista na defesa do “desenvolvimento sustentável”, o caminho simpático para a acumulação de capital que destrói violentamente a natureza com algum charme para os ambientalistas franceses e as organizações não governamentais (ONGs). Por que, afinal, Aécio adotou os programas sociais defendidos por Dilma e exigidos por Marina? Porque além de baratos – consomem um percentual muito pequeno do orçamento federal – é decisivo para estes setores aprofundar a digestão moral da pobreza em curso no Brasil.
Ora, o tucano Aécio jamais ousou afirmar durante toda a campanha que a “ascensão” de milhões de brasileiros à condição de classe média está limitada àqueles trabalhadores que recebem entre R$ 641 e R$ 1019 reais, quando o salário mínimo calculado pelo DIEESE deveria ser R$ 3.019 reais! Tampouco ousa contestar que os 100% de royalties para educação e saúde, peça da campanha oficial, não alcançam sequer 2% de toda a riqueza extraída do Pré-sal. Estes dois exemplos são importantes para observar como na prática estamos governados por um “consórcio petucano”, no qual as divergências ou são alimentadas no terreno confortável do parlamento ou quando tocam em temas estratégicos, são simplesmente ocultadas pelos dois grandes partidos.
A reforma política: decisivo passo do avanço conservador
Finalmente, algo sobre nosso sistema político. A precoce adesão do PT à ordem burguesa não cancelou apenas longos anos de trabalho e esforço político da esquerda para dotar as classes subalternas de um instrumento de luta. Na exata medida em que o PT se transformou em um partido da ordem, o sistema político perdeu sua capacidade de figurar como caminho de transformação para os interesses das maiorias. Em consequência, o sistema político é democrático e adequado para a dominação classista, mas é incapaz de mudar as regras do jogo em favor de outra correlação de forças, mais favorável ao combate dos "de baixo".
Eis a razão fundamental pela qual a burguesia descarta, nas atuais circunstâncias, qualquer estratégia golpista e pode – como o fez até agora – governar com Dilma. Uma alternativa golpista de corte fascista somente se transforma numa necessidades histórica diante do avanço das classes subalternas, da elevação de seu grau de consciência e organização, capaz de tocar na propriedade, no poder político e no privilégio das classes dominantes.
Ora, precisamente Dilma comanda o pacto de classe herdado de 1994 – o Plano Real – com mais maestria que FHC ou Aécio. Afinal, a burguesia pode ou não contar com uma forma de dominação democrática na periferia capitalista? Eu estou de acordo que eventual vitória de Aécio representa a restauração conservadora que Atílio indica. É verdade. Mas é igualmente verdadeiro que a “restauração conservadora” não se assemelha a qualquer onda fascista!
Aécio deixou claro que teria “tolerância zero” com a inflação. Ataca, desde o espectro da direita, o “neodesenvolvimentismo atravessado por profundas contradições” do PT e de Dilma. Caso eleito, Aécio praticaria a política da ortodoxia neoliberal que já enfrentamos durante os 8 anos de FHC. Algo muito distinto de uma onda fascista. E Dilma continuará, caso eleita, com a política atual que até mesmo alguns keynesianos consideram de escassa inspiração neodesenvolvimentista. Enfim, os interesses das distintas frações do capital estão inteiramente contemplados no atual governo, com a vantagem de que os pobres pouco "incomodam", em função da política social.
O que leva muitos de nós ao voto nulo? Algo decisivo. Nos últimos 12 anos, em nenhuma oportunidade Lula ou Dilma convocaram o povo para alguma batalha. Qualquer batalha. Dilma nos convoca tão somente para o voto. Jamais para a luta! Agora, flertam com uma "reforma política" que se transformará numa plataforma do conservadorismo ascendente comandada pela presidente reeleita. Poderá emergir uma reforma progressista de um congresso cada dia mais conservador? Nenhuma possibilidade! Será, sem dúvida, um simulacro de reforma, destinado a afastar ainda mais o povo das decisões estratégicas e dotar os grandes partidos de imunidade, diante de eventual pressão popular. Neste contexto, é completamente falso supor que Dilma poderia reconectar o PT com os movimentos sociais ou reativar antigo compromisso com os condenados da terra no Brasil. Depois de cada vitória, os presidentes eleitos pelo PT centram sua atenção no Congresso Nacional, na prática parlamentar e, de costas para o povo, governam em santa comunhão com as classes dominantes. No limite, indicam para a esquerda marginal e para os movimentos sociais, que “ruim conosco, pior sem nós”. Com a operação, garantem recursos suculentos para as classes dominantes enquanto destinam migalhas para as classes subalternas. Devo dizer com clareza: os programas sociais atualmente praticados são importantes para um país atravessado pela desigualdade, mas é igualmente verdadeiro que também são úteis para a estabilidade burguesa porque são baratos, mantêm os pobres na pobreza e não avançam em sua organização política e consciência de classe!
A opção pelo voto nulo de milhares de militantes socialistas não supõe que o caminho de reconstrução da esquerda radical seria mais fácil numa eventual vitória de Aécio. Tampouco será melhor com a reeleição de Dilma. A esquerda socialista sai desta eleição acumulando grande derrota eleitoral. Mas creio que aprendeu – ou deveria aprender – que figurar como "espírito crítico" do petismo atual, como se sua função histórica se limitasse a concluir um trabalho que o PT abandonou no meio do caminho, é um horizonte limitado diante dos dilemas históricos do país. Tampouco cabe à esquerda servir como espécie de "terceira via" entre os dois principais partidos dominantes. Trata-se de um dilema superado historicamente. A esquerda necessita afirmar-se contra a agenda do petucanismo no terreno parlamentar (a "reforma política"), na elaboração de nova práxis nas organizações sociais – especialmente os sindicatos – e de uma certeza elementar: o sistema político no qual ela figura, agora como nanica ou marginal, não poderá transformar a vida da maioria da população brasileira e muito menos operar no sentido de superar as misérias típicas do subdesenvolvimento e da dependência.
*Nildo Ouriques é economista, professor da UFSC e membro do Núcleo de Estudos Latino-Americanos.
A publicação deste texto é livre, desde que citada a fonte e o endereço eletrônico da página do Correio da Cidadania
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