Fórum, crises e oportunidades


Por Irio Luiz Conti*

Em 2008 o mundo foi sacudido por quatro crises com dimensões internacionais. Ao lado do aquecimento global e da crise ambiental, no primeiro semestre intensificou-se a crise do sistema alimentar global. No segundo semestre eclodiu a devastadora crise financeira que tomou contornos de uma aguda crise econômica, cujos precedentes remontam para a crise mundial de 1929.

Cabe acentuar uma diferença fundamental entre essas crises. A crise do sistema alimentar global se manifesta, sobretudo, nos países pobres e em desenvolvimento e tem nas populações pobres as suas principais vítimas. As crises climática e ambiental, ainda que tenham manifestações mais explícitas em algumas regiões, atingem dimensões planetárias. Por sua vez, a crise econômico-financeira, diferentemente das crises recentes da Ásia, Rússia, México, Indonésia e Argentina, desta vez, teve seu nascedouro no centro nervoso do capitalismo mundial, os Estados Unidos, e se disseminou em efeito cascata atingindo a economia mundial.
Apesar de essas quatro crises possuírem estreita interface - pois são expressão do esgotamento do modelo de produção, distribuição e consumo - neste artigo vamos nos ater à crise do sistema alimentar e levantar algumas possíveis lições em perspectivas. Nos últimos meses, segundo a FAO, o número de pessoas famintas no mundo saltou de 853 milhões para 960 milhões e tende a se acentuar nos próximos meses, postergando o cumprimento da primeira Meta do Milênio, de reduzir pela metade o número de pobres e famintos até 2015. Apenas para ilustrar, na Indonésia, a cada 10% no aumento dos preços de alimentos aumenta em 2,5 milhões o número de pessoas na extrema pobreza.

De acordo com o ex-relator da ONU para o Direito Humano à Alimentação Adequada, Jean Ziegler, em escala mundial, a cada 1% de diminuição da produção de alimentos se tem mais 16 milhões de famintos no mundo. No mundo, pelo menos, 37 países vivem crises alimentares graves, dentre os quais em 22 se faz sentir um expressivo aumento dos preços dos alimentos e em alguns deles, como Somália e Haiti, crescem os conflitos violentos por causa do acesso à alimentação. O mundo passa por um momento crítico que compromete a realização do direito humano à alimentação adequada e saudável de grandes parcelas da população. E, como se trata de uma crise estrutural, a própria FAO estima que serão necessários, pelo menos, 10 a 15 anos para alterar estruturalmente este quadro, mediante pesados investimentos na produção e distribuição de alimentos.

As razões desta crise são várias e se entrelaçam entre si, de modo que não podem ser explicadas e compreendidas de modo simplista. Entre as principais causas encontram-se: as mudanças climáticas, com secas na Austrália e baixas colheitas na Europa; o aumento da demanda de proteínas e carne, especialmente na India e na China, com o aumento do poder aquisitivo e mudanças de hábitos alimentares; o aumento dos preços dos insumos agropecuários, como fertilizantes e defensivos agrícolas, em razão dos expressivos aumentos dos preços do petróleo (apesar do barril de petróleo ter baixado de U$ 147 a U$ 42, os preços dos insumos subiram e sofreram pequeno decréscimo em relação ao decréscimo do preço do petróleo em escala internacional); a crescente demanda de produtos agrícolas como matéria prima para a geração de agrocombustíveis; e a especulação do movimento de mercado futuro de alimentos, com grandes investidores migrando de outros campos para as commodities de alimentos. Este conjunto de fatores produz impactos imediatos, como este que se expressa na crise do sistema alimentar, mas também impactos indiretos, como o aumento da mão-de-obra sazonal, o aumento do uso de petróleo, o aumento do preço da terra e impactos ambientais. Contudo, cabe salientar que estes fatores contribuem, mas não são as determinantes da atual crise alimentar.

O setor agrícola do mundo teve uma produção recorde de 2,3 bilhões de toneladas de grãos em 2007, 4% superior ao ano anterior e em 2008 os números se aproximaram desta mesma cifra. Desde 1961, a produção mundial de cereais triplicou, enquanto a população duplicou. É certo que as reservas estão menores que nos últimos 30 anos. Porém, a síntese é que se produz quantidade de alimentos suficientes, mas que eles não chegam a toda população que os necessita. Isto mostra que a principal razão da atual crise alimentar é a pressão exercida pela adoção do modelo agrícola da "Revolução Verde" e pela liberalização do comércio e das políticas de ajuste fiscal.

Para Olivier de Schutter, relator da ONU para o Direito à Alimentação Adequada, estas políticas, impostas aos países pobres pelo Banco Mundial e pelo FMI, foram reforçadas com o estabelecimento da Organização Mundial do Comércio e de um conjunto de acordos bilaterais de livre comércio que favorecem a concentração e condicionam a produção, a distribuição e os preços dos alimentos. Na mesma perspectiva vem a análise do CONSEA. Ou seja, vivemos uma crise de modelo de produção, distribuição e consumo de alimentos.

As terras férteis que serviam de base para a produção de alimentos para abastecimento do mercado interno gradualmente estão sendo convertidas para a produção de commodities mundiais, destinadas à exportação e abastecimento dos mercados ocidentais. O capital especulativo descobriu os alimentos e os transformou num mero negócio, relegando a soberania alimentar a um segundo plano. Estudos recentes apontam que os fundos de investimentos controlam entre 50 e 60% do trigo comercializado nos maiores mercados mundiais de commodities.

O montante de dinheiro especulativo no mercado futuro de commodities, que aposta nas variações de preço, subiu de US$ 5 bilhões em 2000 para US$ 175 bilhões em 2007.
É inacreditável, mas, quanto mais fome no mundo, mais aumentam os lucros das transnacionais. Em 2007, apenas seis grandes corporações (Cargill do Canadá, ADM dos EUA, ConAgra dos EUA, Bunge dos EUA, Noble Group de Singapura e Marubeni do Japão) lucraram aproximadamente US$ 6,4 bilhões com a comercialização de alimentos.

Em abril de 2008, a Cargill anunciou que os lucros obtidos no comércio de commodities, no primeiro trimestre de 2008, aumentaram 86% comparado ao mesmo período de 2007. A Bunge, no último trimestre de 2007, teve um lucro 77% superior ao mesmo período do ano anterior. Com a ampliação da crise em 2008 aumentaram ainda mais os lucros dessas grandes empresas.
Além do mais, o sistema de produção de alimentos no mundo é completamente dependente de insumos industriais.

Este sistema de produção fortaleceu a concentração da terra, do capital e da renda, colocando na marginalidade da produção de alimentos milhares de agricultores familiares e camponeses em todo mundo. É um modelo que estimula a monocultura, em detrimento da biodiversidade, causa degradação ambiental e destrói o potencial de produção de alimentos através de culturas alimentares locais.

É por isso que para Boaventura de Sousa Santos, a substituição da agricultura familiar, orientada para a auto-suficiência alimentar e os mercados locais, pela grande agroindústria, que visa a monocultura de produtos de exportação, longe de resolver o problema alimentar do mundo, agravou-o, com cerca de um sexto da humanidade passando fome. A fome é uma nova grande fonte de lucros do grande capital, de modo que seus lucros aumentam na mesma proporção que a fome.

Portanto, enfrentar as crises mundiais, especialmente a de alimentos, implica em fazermos uma completa inversão do modelo de desenvolvimento vigente, com a construção de um desenvolvimento sustentável, que tenha como base: a segurança e a soberania alimentar dos povos; o fortalecimento da agricultura familiar e camponesa; o Estado como promotor e regulador das relações econômicas e o mercado com papel secundário no abastecimento alimentar e; a adoção de um conjunto de políticas públicas que estimulem a produção em vista da segurança e da soberania alimentar na perspectiva da realização do direito humano à alimentação adequada.

Isto, evidentemente, implica que os Estados cumpram as cláusulas de direitos humanos ao celebrar acordos comerciais bilaterais e intervenham de forma decisiva para planejar, fiscalizar e controlar a produção e a distribuição de alimentos, protegendo-os das especulações financeiras, combatendo os monopólios dos grandes grupos econômicos e garantindo que cada país tenha o direito à sua soberania alimentar.

Eis uma árdua tarefa que requer empenho dos governos em todos os níveis, com planos estratégicos bem definidos, mas também da sociedade civil organizada, já que os governos somente se movem mediante a pressão e a mobilização social. E o FSM se constituiu em oportunidade especial para as organizações e movimentos sociais de diversas partes do mundo discutirem a crise de alimentos e ampliarem o espectro de iniciativas e alternativas que contribuam para garantir a soberania, a segurança e o direito humano à alimentação adequada aos povos de todo mundo.

*Irio Luiz Conti é graduado em Filosofia e Teologia, mestre em Sociologia, professor universitário, presidente da FIAN Internacional (Information & Action Network - Rede de Informação e Ação pelo Direito Humano a se Alimentar) e conselheiro do Consea.

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