70 anos do Biquíni - Ousadia e libertação feminina
1992 a Rose di Primo Manchete Foto Frederico Mendes |
A HISTÓRIA DO BIQUÍNI
EM SEUS 70 ANOS
por Fernando Moura Peixoto
“Dos cinco sentidos de
Eros, olhar talvez seja o mais inofensivo, já que pode ser exercido a
distância, ao contrário do tato, do olfato, do paladar e da audição, que pedem
intimidade. Mas, nem por isso, há de ser menos picante”. ARMANDO NOGUEIRA (1927 – 2010)
O Dicionário
Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, de Antônio Geraldo da Cunha,
de 1982, 1ª Edição, assim define o biquíni:
“substantivo masculino, ‘maiô de duas peças, de dimensões bastante
reduzidas’, vocábulo formado no século 20. Do francês bikini, derivado do topônimo Bikini, na Oceania”.
O mineiro Alceu Penna (1915 – 1980), desenhista,
ilustrador e estilista, discorreu sobre o assunto em uma revista O CRUZEIRO, na década de 1950: “No
início do século 20, as mulheres começaram a frequentar as praias... E os
trajes de banho cobriam o mais possível as formas das senhoras... Depois o
conforto foi dando suas ordens e os maiôs encurtando... As pernas foram ficando
inteiramente descobertas e surgiram os decotes nos ombros, colo e costas... Mas
o encurtamento prosseguiu e veio o duas peças e depois o toque ousado com o
biquíni. Parece que este modelo foi tirado do Teatro de Revista. Agora,
perguntamos: o que faltará às mulheres que desejarem se exibir? A sua
radiografia?”
COMO SURGIU O
BIQUÍNI
Uma
verdadeira revolução feminina aconteceu com o surgimento do biquíni, que, na
visão irônica e irreverente do humorista Leon
Eliachar (1922 – 1987), “é um pedaço de pano cercado de
mulher por todos os lados” ou “um
pedacinho de pano cercado de olhos por todos os lados”. E o libertário
traje de banho que literalmente detonou os costumes, a cultura e a moral vigente
por entre os tempos, em 2016 está completando 70 anos de existência.
O nome ‘biquíni’ tomara-se emprestado do local
de dois explosivos testes nucleares subaquáticos de bombas atômicas - como
parte da ‘Operação Crossroads’ -,
realizados pela Marinha norte-americana no início de julho de 1946, no atol de Bikini, no arquipélago Marshall (36 ilhas em torno de uma lagoa), situado no
Oceano Pacífico Sul, na região da Micronésia, oeste da Oceania.
De fato, seu
inventor, o engenheiro mecânico francês Louis
Reárd (1887 – 1984) – um desempregado que cuidava do ateliê da mãe, em
Paris – aproveitou-se de uma ideia do figurinista Jacques Heim (1899 – 1967), que criara um pequeno maiô de duas
peças denominado ‘átomo’ (‘atome’, no idioma de Racine e Voltaire), e confeccionou um tipo ainda “menor que o menor maiô do mundo”,
escandalizando a sociedade da época, já que o corpo e sua nudez eram um tabu na
cultura europeia, escondidos durante séculos. Dizem que a briga pela
paternidade da diminuta indumentária rende até hoje.
O LANÇAMENTO DO BIQUÍNI
Fabricado em
tecido de algodão com estamparias de manchetes de jornais, o biquíni de Louis Réard desvelava a região
umbilical – uma “simbologia da vida” – e era tão pequeno e cavado
(principalmente na parte de trás) que não houve manequim parisiense que
aceitasse desfilar com ele. A solução encontrada foi apelar para Micheline Bernardini (1927 -), uma
gracinha de 19 anos, dançarina do Casino
de Paris, que se apresentava nua
em espetáculos musicais noturnos.
Em 5 de julho
de 1946, na piscina pública Molitor - e depois às margens do Rio Sena -, tendo na mão a caixinha em que se comercializava a calcinha
do biquíni, ela posou com o modelito
ousado e despudorado de Réard,
desbancando o recente lançamento do compatriota - e rival - Heim. A audácia de Micheline trouxe-lhe notoriedade e fama passageiras. Mais de 50 mil
cartas postadas por súbitos fãs não foram o suficiente para que a bela
francesinha tentasse uma carreira no cinema.
UM SUCESSO MUNDIAL
Arrojado e
polêmico, vetado logo em alguns países e censurado também pela Igreja – o Papa Pio XII (1876 – 1958), que tolerou
o nazismo de Adolf Hitler (1889 - 1945), chamou-o de “pecaminoso”
e exortou as católicas a não utilizá-lo – o biquíni revelava quase tudo, para o
delírio do público masculino – e feminino também; já existiam as ‘versáteis’ ou ‘relativas’ desde tempos imemoriais. E Louis Réard elaborou ainda uma estratégica propaganda de vendas,
com o ‘slogan’: “Se não puder ser passado através
de um anel de casamento, não é o autêntico biquíni”. Despindo muito mais
do que vestindo, a novidade percorreu mundo afora, quebrando tabus, ditando
modismos, influenciando ainda a roupa íntima feminina. E porque não dizer,
preparando o terreno para a emancipação sexual das
mulheres e o advento da pílula anticoncepcional.
Seguiu-se
mais de um decênio. A música pop da inquieta juventude e a telona mágica da
Sétima Arte contribuíram para a popularização do biquíni, que foi recheado pela
sensualidade de atrizes como Bettie Page,
Brigitte Bardot, Sophia Loren, Gina
Lollobrigida, Mylène Demongeot, Pascale
Petit, Marisa Allasio e Rossana Podestà. E depois, Ursula Andress e Raquel
Welch, dentre tantas.
PIONEIRISMO NO
BRASIL
Na América
do Sul, a primazia de usar o biquíni na orla marítima coube à brasileira Elvira Olivieri Cozzolino ‘Pagã’ (1920 –
2003), 29 anos, vedete, atriz, cantora e compositora paulista nascida na
interiorana Itararé – cidade famosa pela batalha que nunca aconteceu, no Movimento Revolucionário de 1930, entre soldados revoltosos e
forças federais – e radicada no Rio de Janeiro.
Mito erótico
nacional de então, ela rasgou e adaptou o modelo de duas peças que utilizava no
teatro rebolado. E, no início de 1950, na praia de Copacabana, com um biquíni
branco, desnudou o escultural corpo bronzeado, que era pontilhado por oxigenada penugem loura.
Poucas se
atreveram a imitá-la. Quando isto acontecia, eram também vedetes, artistas ou
modelos, como a alemã Miriam Etz (1914 –
2010), Irene Hozco (s/d), Norma
Tamar (1925 -), Carmem Verônica (1933 -) e a morenaça gaúcha Eloína Ferraz (1937 -) – a pioneira em
fazer seguro do próprio corpo (dois
milhões de cruzeiros em 1956, na Sul América) e a vestir calça ‘saint-tropez’ (que alongava o desenho do
torso, com cintura bem abaixo do umbigo) no Brasil. Ou raras e simples
praianas, como a exuberante francesa Catherine
Dessau (s/d) – a primeira mulher a pilotar uma motoneta Vespa no Rio de Janeiro – e a esquálida
e displicente ‘Brigitte do Arpoador’
– assídua frequentadora do bar Mau
Cheiro. E ainda a jovem colunável Carmen
Mayrink Veiga (1929 -), que portava
um biquíni francês com caracteres de jornal, feito especialmente para ela.
Somente plenamente
consentido na praia a partir de 1957, o biquíni pegaria mesmo no Brasil durante
os anos 1960 - servindo a contestações sociais e políticas -, em pleno regime
de exceção, no rigor e na vergonha de uma ditadura militar instaurada em abril
de 1964. Anteriormente, em 1961, quando ainda se respirava um pouco de democracia
no país, o presidente populista Jânio
Quadros (1917 – 1992), em
meteórica e desastrosa passagem por Brasília, a nova capital federal, proibiu a
realização de desfiles de misses e modelos em biquíni – em suas próprias
palavras, “atendendo a um abaixo-assinado de milhares de damas de São Paulo”.
Em 1972, na
crônica ‘Umbigo’, nosso expoente bárdico Carlos Drummond de Andrade (1902 – 1987) – que não era bobo nem nada,
muito pelo contrário, um erotômano de carteirinha – discreteou
brilhantemente sobre o lance da barriguinha de fora:
"Umbigos andam por
aí desafiando tua capacidade de curtir o novo dentro do eterno. Se na praia
eles não são percebidos, porque se inserem no quadro global, na rua, no
coletivo, na loja, no escritório, são uma presença nova, uma graça diferente
acrescentada ao espetáculo feminino, um dom sem destino certo, que é a
bonificação de um ano em que tantos perderam na bolsa, mas acabaram lucrando na
vista...”
Heloísa Pinheiro, a garota de Ipanema |
A TANGA EM IPANEMA
“No meu tempo
enfiava-se o bumbum dentro do biquíni. Hoje se enfia o biquíni dentro do
bumbum.” CARMEM VERÔNICA (1933 -)
Vinte e seis
anos depois de Louis Réard, na década de 1970 – ainda imperando a ditadura no
Brasil – a modelo Rose di Primo (1955 -),
de 17 aninhos (nascida em São Paulo, mas
carioca da gema no seu modo de ser e de pensar), grande aficionada por
frescobol e considerada o maior símbolo sexual nacional da época, reinventaria
o biquíni em Ipanema. Na base da improvisação - o jeitinho brasileiro -, meio sem querer, ela cortou aqui e acolá,
e criou a ‘tanga’ em forma de ‘V’, uma estreitíssima faixa de pano situada
inferiormente à cintura. Exportada para Saint-Tropez,
na França, a tanga conquistou o planeta, frequentando as capas das grandes
revistas internacionais. “Estamos a caminho do nada”,
sentenciou um jornal de São Paulo.
Impedidas de
praticar o ‘topless’ por uma
proscrição estatuída e repressão policial, as ipanemenses lançaram então uma
verdadeira tanga – dois exíguos quadriláteros de tecido atados ao corpo por
fitas e cordões, na altura dos quadris. Complementados com cintos, aros,
cordinhas, bordados e imaginativas amarrações, sucederam-se variedades – o biquíni de crochê, o ‘enroladinho’, o ‘cortininha’, o ‘E.T.’ (“entra todo” no bumbum da gatinha), o ‘cavadão’, o ‘asa-delta’ e o ‘fio-dental’
– tudo muito “cercado de olhos por todos os lados”. Plenos de sensualidade,
os verões cariocas nunca mais foram os mesmos – ainda bem.
Nos anos 1980
– a intervenção militarista agonizava no país –, vencendo a hipocrisia e o
falso puritanismo, audazes brasileiras puderam finalmente mostrar os seios nas
praias, arregimentando uma legião de curiosos – adeptos do mixoscopismo, a palavra em português que designa o voyeurismo. Timidamente
o ‘topless’ foi chegando, mas ainda
controverso e mal visto, mesmo no final do século 20 – lembrando o que o
poetinha da paixão Vinicius de Moraes
(1913 – 1980) - outro voyeur de plantão -, em ‘Balada das
Meninas de Bicicleta’, já
previra em 1946:
“Vós cuja ardente virtude / Preservais muito
amiúde / Com um selim de bicicleta / Vós que levais tantas raças / Nos corpos
firmes e crus: / Meninas, soltai as alças /
Bicicletai seios nus!”.
E, em áreas
– poucas – reservadas aos amantes do naturismo, veio o ‘bottomless’, o nada
antecipado pela imprensa paulista nos anos 1970.
AS NOVAS CRIAÇÕES E
O FUTURO
Em 1995, na Europa,
o alemão Karl Lagerfeld (1933 -),
designer e fotógrafo, desenvolveu o reduzido ‘eye patch’ – propício às magras e longilíneas ‘top models’ – que descobre as curvas da mulher nos mínimos
detalhes. E criou o caríssimo biquíni Coco
Chanel, que motivou um singular assalto no Brasil, em outubro de 2000. A vítima, a atriz Bernadeth Lyzio (1963 -), caminhava tranquilamente
pelas areias da praia de São Conrado, bairro nobre carioca, quando dois homens
e uma mulher levaram à força o sofisticado biquíni
Chanel que ela usava, deixando-a seminua, apenas com uma canga
transparente. O caso repercutiu bastante
na mídia, pelo inusitado roubo e por Bernadeth
Lyzio ser viúva do dramaturgo Dias
Gomes (1922 – 1999).
Grandes
estilistas, designers e produtores de moda vão continuar arquitetando fabulosas
inovações para as vestes femininas das musas praianas e divas das passarelas
internacionais neste terceiro milênio. Ou, talvez, promover um longo retorno
aos moldes tradicionalistas e comportados do passado. Quem sabe, aperfeiçoar um
modelito ‘genômico’, um traje de banho leve, voluptuoso e diáfano, elaborado
cientificamente de acordo com o sequenciamento genético de sua usuária. Haverá
ainda mais alguma coisa a se ocultar depois do biquíni?
Sim, a usurpação solerte deste meu
trabalho por uma aluna de Graduação em Moda da Universidade Anhembi Morumbi,
que atende pelo nome de Camila Preitas. Ela me procurou em 2002, orientada por
Diana Galvão, subeditora de ‘Moda Brasil’ - outra espertinha -, para uma
entrevista sobre a minha história do biquíni, amplamente publicada na chamada
‘pequena imprensa’ em sua versão primitiva, simplificada. A incipiente Camila
pretendia escrever – ora vejam só – a respeito do mesmo assunto. Como recusei,
utilizou sem autorização o meu texto, de forma inapropriada, e o publicou mundo
afora, como se tivesse me ouvido. Estou em tudo quanto é sítio de vendas de
moda praia e lingerie, com erros grosseiros em afirmações esdrúxulas que jamais
pronunciei. Restou ao menos um consolo: sempre bem acompanhado de fotos de
belíssimas modelos em sumários biquínis.
“O plágio está na base de todas as literaturas, salvo da primeira, que,
aliás, é desconhecida.” JEAN GIRAUDOUX (1862 – 1944)
O autor: jornalista colaborador desde 1982,
com ingresso na Associação Brasileira de Imprensa, ABI, em 1992, Fernando Moura Peixoto nasceu no Rio de
Janeiro em julho de 1946, mesmo mês da criação do biquíni em Paris – e não
descansou enquanto não conheceu a fundo a novidade nas praias cariocas.
Escreveu,
entre outros: “Frescobol, Um Esporte
Como Outro Qualquer”, “A Verdadeira
História do Futevôlei”, “Altamiro
Braga, o Introdutor do Vôlei na
Praia”, “Um Século de Raquete na
Praia”, “A Praia Vista Por um Vendedor Ambulante”, “A Visita do Rei Alberto ao Brasil em 1920”,
“Breve Relato Histórico do Carnaval Carioca” e “Marilyn Monroe, Mito Maior”.
De 1993 a
2005 integrou 22 antologias literárias da Litteris
Editora. Faz humor com o pseudônimo de J.
PRAIANO (1977), e começou a fotografar em 2011.
Blogues que
já postaram artigos seus: Mundo Botafogo,
Minas de Mim, Conexão Penedo, Sipeal
Penedo, De Ópera e Concertos, Música de Fronteira, Nós da Poesia, Imersão
Latina, Cidades do Meu Brasil, Observatório da Imprensa e Museu da Pessoa, entre outros.
*FERNANDO MOURA PEIXOTO - Associação Brasileira de Imprensa 0952-C
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