Os 100 anos de Carolina Maria de Jesus, autora de 'Quarto de Despejo'


Carolina Maria de Jesus
Por Carlos Lúcio Gontijo*

Não é precisamente a forma de governo o fator responsável pela condução democrática dos atos administrativos orientados pelos agentes políticos, quase sempre representantes das elites econômicas, pois o processo eleitoral, ainda que fiscalizado, faz da democracia um sistema caro no gerenciamento e na escolha,fenômenos agravados em país cuja população anda entre o analfabetismo, o “ler soletrado” e a desinformação.

Entre nós foi mais fácil levar o voto aos analfabetos que conduzi-los à formação escolar. E isso tem somente um significado: aumentar o número de eleitores que possam ser usados como massa de manobra. Os indecisos que se nos apresentam em todas as pesquisas, somente se tornarão efetivos quando alguém decidir por eles. E como diria alto-falante de circo ou parque do interior “esse alguém sabe quem”.

Historicamente, já tentamos democratizar ditadores, mas apenas conseguimos legitimar, ungir nas urnas, através do voto direto, o poder autoritário. Getúlio Vargas, por exemplo, nunca foi menos ditador pelo simples fato de ter sido eleito pelo povo. Ao contrário, tomou o fato como uma aprovação definitiva a seu passado discricionário e jamais mudou os seus métodos de fazer política. Aliás, suas dificuldades em lidar com as posições contrárias e as adversidades políticas da democracia o levaram à famosa carta-testamento e ao suicídio – seu último gesto radical.

O problema todo é que nunca experimentamos alguma democracia de governo no tocante à condução da economia. Não é à toa, portanto, que, toda a vez que a economia brasileira dá um salto em seu crescimento ou em sua modernização, o povo brasileiro consegue a façanha de ficar cada vez mais pobre. O regime militar de 1964 revela-nos bem esse quadro tanto estranho quanto prova da ganância e da insensibilidade de nossas elites, pois nos primeiro 21 anos de ditadura militar o Produto Interno Bruto subiu de US$78 bilhões para US$270 bilhões, porém a situação dos miseráveis não melhorou, porque a mesma falta de democracia econômica que fazia a impopularidade dos políticos no regime democrático derrubado ainda atuava perversamente na sociedade, onde as estatísticas continuavam dividindo números indivisíveis. Ou seja, aquele que não comia frango algum permanecia patética e abstrativamente sentado à mesa com o privilegiado que comia três, quatro.

Os homens públicos brasileiros, de forma quase que generalizada, têm por meta apenas a sobrevivência política de si mesmos, e isso fica-nos bastante claro, por exemplo, na fala de Jarbas Passarinho, então ministro do Trabalho, na reunião ministerial em que se aprovou o AI-5, a 13 de dezembro de 1968: “A mim repugna enveredar pelo caminho da ditadura, mas já que é inevitável, às favas todos os escrúpulos”. Passarinho ainda teve a felicidade de expressar o seu sentimento, contudo a grande maioria o seguiu silenciosa e covardemente, sob a base do “já que está deixa ficar”. Remontamos a tudo isso para irmos ao encontro de “Quarto de Despejo”, obra literária de Carolina Maria de Jesus, uma negra com apenas o segundo ano primário, moradora na Favela do Canindé, à beira do rio Tietê, em São Paulo. Seu livro, editado em 1960, graças ao apoio de seu descobridor, o jornalista Audálio Dantas, revela-nos não apenas a miséria em que vivem os habitantes de nossas favelas mas também a pobreza de formação humana que domina nossos representantes políticos. E até mesmo os que se dispõem a tos de caridade junto aos pobres são colocados sob suspeita pela autora: “Estão chegando as enfermeiras do Frei Luiz, que vêm curar as chagas dos favelados. Eu queria saber como é que o Frei Luiz descobriu que os favelados têm chagas”.



Em  “Quarto de Despejo” não temos apenas a impressão digital das mazelas econômicas e político-sociais, mas também a descrição até da queda em nossa qualidade de educação, pois Carolina Maria de Jesus, que os editores nos dizem de vocabulário pobre, mostra-nos um texto de razoáveis recursos, com palavras como tépido, soez, cálido, cujos significados muitos jovens candidatos aos vestibulares de hoje desconhecem.

Carolina Maria de Jesus inicia o relato de seu “livro-diário”, em 15 de julho de 1955, da seguinte forma: “Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impedem a realização de nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida.” E continua mais à frente, “...O que eu aviso aos pretendentes à política é que o povo não tolera a fome. É preciso conhecer a fome para descreve-la. Quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Juscelino. As dificuldades cortam o afeto do povo pelos políticos”. E por falarmos em Juscelino Kubitschek, Carolina Maria de Jesus prova-nos de forma explícita que a vida dos mais humildes começou a piorar quando o governo democrático de Juscelino buscou o progresso a qualquer custo, forçando drasticamente as dívidas interna e externa, com a conseqüente desvalorização da moeda nacional e início da carestia desenfreada.

Carolina, antes do governo “JK”, conseguia alimentar seus filhos com o dinheiro advindo da cata de papéis e ferro velho pelas ruas da capital paulista afora, mas de repente viu-se obrigada a buscar restos de comida nos lixos para complementação de seu sustento. Precisamente no período JK, talvez instigada pela fome, Carolina se torna muito mais mordaz e até mesmo filosófica em sua crítica aos políticos: “...O que o senhor Juscelino tem de aproveitável é a voz. Parece um sabiá, e a sua voz é agradável aos ouvidos. E agora o sabiá está residindo na gaiola de ouro que é o Catete. Cuidado, sabiá, para não perder a gaiola, porque os gatos quando estão com fome contemplam as aves nas gaiolas. E os favelados são os gatos. Têm fome”. Pois é. E a profecia da negra mineira Carolina Maria de Jesus, nascida por volta de 1915, foi desaguar em 1964, não para acabar com a pobreza dos milhares de marginalizados pela economia antidemocrática no campo dos salários e das oportunidades, mas para redimensionar as estruturas do poder a fim de que a falsa democracia brasileira, às vezes dirigida por um ditador oficial de farda e tudo, outras vezes comandada por civil metido a salvador da pátria, pudesse usar todos os mecanismos de governo a serviço da modernização do exercício do fisiologismo e corporativismo políticos. Ou melhor dizendo, criou-se uma espécie de neo-autoritarismo que veio das urnas, aproveitando-se da má formação intelectual de nosso eleitorado e da utilização da força da mídia de comunicação eletrônica todos os dias e não propriamente às vésperas de eleições.

E para melhor exemplificarmos a existência dessas peças político-teatrais periódicas, temos o recente impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Melo e a prisão de seu tesoureiro de fundos de campanha, Paulo César Farias, encenações secundadas por várias comissões de inquérito parlamentar, que transformaram o Congresso Nacional em verdadeiro cortiço, o que serviu inclusive para dar-lhe maior identificação com os mais pobres e, mais rapidamente, apaziguar a ira popular contra nossos homens públicos. Dessa forma, a máquina administrativa da democracia pôde ser recolocada em novos trilhos, rumo aos mesmos objetivos aparentemente combatidos.

Carolina Maria de Jesus conseguiu o sonho de editar seu livro e transferiu-se para uma modesta casa de alvenaria. A edição de seu trabalho literário trouxe-lhe fama e algum dinheiro, mas não o suficiente para que deixasse a favela, ou escapasse da pobreza. Quase esquecida pelo público e pela imprensa, aos quais tinha apenas o escândalo da realidade para oferecer, sem anomalias de comportamento moral nem o esoterismo de alheamento tipo Paulo Coelho ou o distanciamento de best-seller norte-americano, a escritora morreu a 14 de agosto de 1977, em um pequeno sítio da periferia de São Paulo, mas continua viva em nossos dias, em que o terceiro mundo, quintal das nações a que denominamos civilizadas, vai cuidando de ampliar o seu “quarto de despejo”, onde joga os dejetos de seu processo econômico injusto, inibindo o renascimento do patriotismo, estrangulando toda a aspiração a uma reforma agrária verdadeira e a todo desejo sincero de implementar-se uma distribuição mais cristã da renda nacional e até mesmo sufocando a ânsia pela experimentação das liberdades constitucionais sob o indispensável reforço da liberdade econômica para a grande maioria dos indivíduos.

A bênção, negra mineira Carolina Maria de Jesus, esquecida pelo intelectualismo enfadonho, frio e exibicionista, você continua indelevelmente viva e cantando com seu choro nossas realidades que fazem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – um simples medidor de nossa pobreza febril e endêmica, pois nossos políticos ainda são os mesmos: “...De quatro em quatro anos, mudam-se os políticos e não solucionamos a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursais nos lares dos operários...” A bênção, negra Carolina, por entre trapos e maltrapilha, revestir de poesia o chão sem estrelas de seu barracão de zinco, contradizendo a canção popular: “...A noite está tépida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu sou exótica, gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido”.


* Carlos Lúcio Gontijo é poeta, escritor e jornalista

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