As principais mensagens do filme Saneamento Básico

Por Antonio Lopes Cordeiro (Toni)*

Fui convidado pela minha orientadora de Mestrado, Elisabete Stradiotto Siqueira, a escrever um capítulo de um livro que ela está idealizando, onde a partir do conteúdo de um filme seja possível fazer uma análise da Administração.

Como a minha área é Administração Pública, escolhi o Filme Saneamento Básico, que de uma forma simples e descontraída nos oferece conteúdo suficiente para fazer uma ampla análise da situação do saneamento básico nas cidades brasileiras. Segue abaixo uma parte do capítulo, justamente a que faz uma leitura do filme.

Partindo da realidade da maioria das cidades brasileiras, pode ser observado que o filme aborda um contexto peculiar, ao situá-lo num vilarejo sulino com moradores descendentes de italianos. Isso caracteriza que aqueles moradores, apesar de morarem numa periferia, ou com características de periferia, pelo abandono do poder público, sabem se defender e reivindicar seus direitos. Situação bem diferente dos migrantes que povoam as periferias brasileiras. A justificativa dessa afirmação pode ser notada em alguns detalhes, tais como: o fato do personagem Otaviano já ter sido subprefeito, o que mostra certo grau de compreensão política; a existência no vilarejo de pequenos empresários como ele próprio e o personagem Antonio e um sentido de organização social, na medida em que se cria uma Comissão de Moradores, que entre outras ações já tinham elaborado vários abaixo-assinados reivindicando a construção da fossa. Esse fato só vem reforçar a tese de que a população conhece seus direitos, o problema está como essa população se organiza e quem são e como atuam seus representantes.

Como ocorre em grande parte dos municípios brasileiros, principalmente nos de pequeno porte, as reivindicações não são atendidas e muito menos quem reivindicou é recebido por algum gestor, prática que reforça a falta de crença da população, tanto pela política como principalmente pelos políticos. É evidente que não é bem assim, pois mesmo nesse tipo de administração pública existem pessoas comprometidas, sejam comissionadas ou servidor de carreira. Quem nivela por baixo é a imprensa brasileira, que em nome das seis famílias que detém 70% dos meios de comunicação, se constituem no quarto poder.

O fato da prefeitura da localidade não ter recursos destinados ao saneamento básico, apesar de ser uma reivindicação antiga, revela em primeiro lugar o descaso de muitos gestores com relação à questão do saneamento, que desagua em vários problemas, inclusive de saúde pública e segundo a necessidade de manter a população distante do entendimento do orçamento público. Essa situação pode ser notada na medida em que nem mesmo os gestores das diversas áreas de governo, na maioria das prefeituras, sabem como o orçamento é elaborado, num primeiro momento através do PPA (Plano Plurianual) e posteriormente através da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Segundo o Fórum Brasileiro de Orçamento Participativo, a extrema maioria dos municípios não praticam o Orçamento Participativo e muitos dos que adotaram o OP como é chamado, abandonaram no segundo mandato. Há evidência que isso ocorre por algumas razões, entre ela o fato de não haver integração de governo e isso levar a participação de apenas um ou dois secretários nas reuniões de OP e sobre eles cair toda a insatisfação da população e também pelo fato de não haver, por parte das administrações públicas, uma relação mais próxima com a população, seja através de Conselhos Gestores Participativos, onde a maioria ainda são apenas consultivos ou mesmo a falta de incentivo para que a sociedade se organize, através de suas entidades representativas e possa exercer o direito de Participação e de Controle Social. Algo que o poder público poderia iniciar pela organização de Fóruns Temáticos, sem custo algum para os cofres públicos e de grande benefício para a formulação e controle das políticas públicas.

O enredo do filme se desenrola em como usar uma verba federal aprovada de R$ 10 mil para a produção de um filme, na construção de uma fossa que custaria R$ 8 mil. A existência de uma verba federal aprovada, independente de que área, nos dias de hoje demonstra a existência de um projeto e a mudança de curso dessa verba relatado no filme, da cultura para o setor de obras, nos permite alguns comentários. O primeiro deles voltado à criatividade humana, aonde através de uma breve pesquisa, os personagens vão vencendo suas barreiras e limitações e vão alinhando o enredo de acordo com a necessidade da população do vilarejo. Na prática, as pessoas precisam ser estimuladas. Um segundo comentário está ligado como a personagem Marcela, gestora da subprefeitura, enxergava o fato de uma possível devolução dos recursos para Brasília. Dizia ela: “Não se pode devolver verba para Brasília. É um absurdo”. Um comentário com alta dose de maldade e adotado por parte do grupo, principalmente pelo fato de que se a verba não for utilizada tem que de fato ser devolvida. Além disso, o comentário traz à tona como a população enxerga a cidade de Brasília e os políticos, como uma cidade do poder e repleta de ladrões. Nos dias atuais essa avaliação é reforçada diariamente pela velha mídia, que afirma que todos os representantes eleitos seja uma corja de ladrões, com o nítido interesse em reafirmar que política é uma coisa ruim e, portanto tudo que dela migrar também será. Afirmações que afastam cada vez mais a população de enxergar seus direito, de se aproximar dos códigos do poder  e de uma efetiva participação na vida política de sua cidade, seu estado e no próprio país. Trata-se de algo direcionado para coibir o crescimento dos setores esclarecidos da sociedade

O desenrolar do filme mostra também o conflito entre os personagens. Fazer o filme de qualquer jeito apenas para ter acesso ao dinheiro ou fazer bem feito?
           
Outra questão importante abordada é a saudade dos italianos por sua terra natal e pela cultura de seu país. Essa cena nos leva a refletir os desencontros de imigrantes e migrantes, que pela sobrevivência financeira tiveram que abandonar a história de vida de cada um e se deslocarem para regiões que não conheciam, onde muitos deles sofreram e ainda sofrem maus tratos e discriminação.
           
No campo empresarial algumas observações. Primeiro o fato do personagem Antonio, que é dono de uma pequena empreiteira de obras, assumir o projeto de construção da fossa, sem licitação. Sua convicção é tamanha que chega a comprar de forma antecipada materiais para a realização da obra, chegando ao absurdo de sugerir o uso da verba da merenda escolar para a construção de uma ponte. Em seu diálogo com a gestora, fica claro um jogo de interesses de ambos os lados. Em outro momento o filme aborda os patrocinadores do filme, que aceitam em troca de divulgarem seus produtos para as crianças e pais da localidade, como algo natural.

A troca de acusações feita pelos personagens Otaviano e Antonio, mostra tanto o processo de corrupção mantido por parte do poder público e as empresas, como também a sonegação fiscal, que em regras gerais representa pelo menos duas vezes do valor da corrupção existente hoje no país, que se constitui numa poderosa vertente da corrupção.

O universo da sociedade machista é abordado no filme em dois episódios. O primeiro no patrocínio, quando um dos empresários fica interessado na conversa da gestora se referindo às mulheres do bar e segundo pelo personagem Zico, o produtor que surge na parte final do filme. Todo seu interesse esteve voltado à Silene, inclusive sendo pano de fundo para uma mudança surpreendente no roteiro do filme, ao explorar sua sensualidade.

No campo do poder, o prefeito local, como ocorre em várias partes do país, se omite da responsabilidade na medida em que não destina nenhum recurso para solucionar o problema do saneamento básico, reivindicado pela população há tempo, porém quando o filme chega à fase final e as obras se iniciam, mesmo sem a aprovação da verba, o que é muito estranho, surge a figura do político de carreira querendo aparecer às custas do trabalho da população. No final do filme ainda arremata ao citar seu investimento, como se tivesse sido investimento da prefeitura em cultura, para a realização das obras, de não terem sido concluídas, o que demonstra que pelo menos parte da verba tenha sido desviada, houve um crescimento cultural e de turismo na cidade.

Algo inusitado ocorre na parte final do filme. Os atores, mesmo de forma amadora, porém comprometidos com o resultado do trabalho, procuravam desenvolver o enredo que planejaram. A mudança do nome do filme: “O monstro da Fossa” para “O Monstro do Fosso”, ocorre quando surge à figura de Zico, procurado para editar o que já estava pronto. Logo começa a palpitar e usando toda a sua experiência, malandragem e interesse na personagem Silene, convence o grupo que o que já é bom pode ficar melhor, pagando por isso, é claro. Um dos problemas a ser administrado a partir desse momento é o orçamento do filme, que com essa novidade come a ficar caro e distante do seu objetivo principal. O recurso usado pelo personagem Zico para convencer a mudança de rumo, é tocar na vaidade pessoal dos atores e uma mudança de postura de alguns deles começa a acontecer.

Após o convencimento, Zico consegue seu intento. O filme é editado, regravado algumas partes e com isso muda totalmente o enfoque, inclusive dos atores e membros da Comissão de Moradores. O objetivo que era arrecadar fundos para a construção da fossa, dá lugar à projeção individual do elenco. No meio disso tudo algo positivo: mostrar para todos que para ser ator e atriz não precisavam ir para Porto Alegre. Tinham acabado de realizar uma obra digna de ser mostrada ao público.

O filme termina com a revelação de que as obras da fossa não foram concluídas, como ocorre em inúmeras cidades brasileiras, porém os atores da comunidade se sentem prestigiados com o sucesso do filme e exploram isso das mais variadas formas possíveis e a população da Linha Cristal? Continuam a esperar pela construção da fossa prometida, assim como muitos brasileiros e brasileiras aguardam ainda por água e esgotos tratados.


*Antonio Lopes Cordeiro (Toni)
Pesquisador em Gestão Pública e Social
Coordenador do Programa de Capacitação Continuada
em Gestão Pública da Fundação Perseu Abramo
toni.cordeiro1608@gmail.com

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