Tecnologia, por si, não democratiza a comunicação

Por Ana Paola Amorim*

Há algo de estranho na (suposta) festa anunciada por um discurso aparentemente simples: com o avanço tecnológico, cada pessoa se torna uma mídia. Por isso, a comunicação torna-se livre, por conta de uma tecnologia avessa ao controle e que estimula a máxima dispersão e disseminação da informação.

Esse pretexto tem sido amplamente utilizado dentro do governo da presidenta Dilma – por ela própria e pelo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo – e pelo Instituto Palavra Aberta. Recentemente, foi utilizado pela ex-senadora Marina Silva, em entrevista concedida a Norma Couri, no Observatório da Imprensa (ver “‘A imprensa não é opinião pública’”). Vejamos alguns trechos: “À medida que cada um de nós assume o poder da mídia que nos é ofertado pela internet, as possibilidades de controle da informação se reduzem drasticamente.” Mais à frente: “Em razão disso, creio que bandeiras como o fim do monopólio da imprensa tendem a se tornar extemporâneas. O foco hoje para defender o acesso universal à informação deve ser a garantia do direito de todo e qualquer cidadão ter acesso à internet. Ela deve ser um ambiente de todos e não de alguns.” E fecha com a conclusão, quase peremptória: “Isso por si só quebra o paradigma do controle, uma vez que a internet, por seu DNA, não admite controle.”

Na fachada, o tom festivo do potencial democratizante da internet sustentado pela leitura pouco crítica. No fundamento, a reorganização em roupa cibernética de um discurso antigo que busca desqualificar o debate da regulamentação democrática da mídia, como base da democratização da comunicação e universalização da liberdade de expressão.

Mas as premissas são equivocadas, a começar pelo determinismo tecnológico, que não se sustenta em leituras contextualizadas. Passa também pela tentativa de naturalizar a tecnologia, buscando descrever a internet como uma ferramenta naturalmente impermeável a qualquer forma de controle, como se o funcionamento dessa tecnologia não estivesse vinculado à economia política que organiza o setor.

Nos anos 1920, Bertolt Brecht elaborou uma teoria do rádio na qual vislumbrava a possibilidade de formação de uma ágora informacional, pensando na concepção original desta tecnologia, na época com características de um meio de comunicação bidirecional. Mas condições políticas e econômicas priorizaram a exploração comercial e prevaleceu o rádio na forma unidirecional que conhecemos. Por que, então, acreditar que a Internet continuará livre por uma condição inscrita no “DNA” de sua tecnologia?

Mas o anúncio da ágora virtual torna-se um pretexto insidioso por outros motivos. Trata-se da repetição da lógica neoliberal da defesa do livre mercado de ideias. O problema é que essa argumentação restringe o conceito de liberdade de expressão como conceito de falar o que se quer. No entanto, liberdade de expressão pressupõe a fala franca e livre, mas também o direito de ser ouvido. Importa que a fala tenha repercussão pública. E a repercussão da fala pública não vem de um conjunto desconexo de frases soltas, valorizadas em um pretenso mercado que confere peso comercial às ideias. Mesmo no contexto da rede, os veículos de comunicação de massa ainda cumprem um papel fundamental na definição e enquadramento da agenda pública. O movimento da Internet valoriza o movimento espontâneo, que tem, inclusive, capacidade de interferir no fluxo de comunicação tradicional. Muitos jornais e revistas se pautaram por isso. Mas o espontaneísmo é uma fábula. Perigosa pelo fato de ocultar as articulações que sustentam a formação de sentidos de falas públicas.

Fonte de dominação

Aprendi nos livros do professor Milton Santos que uma tecnologia não substitui a outra. Há que se considerar a convivência com as diversas tecnologias e as condições de acesso a elas, fonte e produção de profundas desigualdades. No caso da Internet, a última Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação no Brasil (TIC Domicílios 2012, elaborado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil), só agora o acesso à internet alcançou 49% da população brasileira. São 80,9 milhões de usuários de Internet e, segundo o relatório, as diferenças regionais e socioeconômicas ainda dividem o Brasil em dois grupos: de um lado, as classes A e B das áreas urbanas, predominantemente do sul, sudeste e centro-oeste com maior acesso; do outro, as classes C e D, sobretudo nas áreas rurais do norte e nordeste do país com acesso precário, para dizer o mínimo.

O discurso simplista da ágora virtual espontânea esconde ainda um grande perigo: a concentração da propriedade é no Brasil, hoje, um dos principais obstáculos à promoção ampla da liberdade de expressão. É um mercado a ser regulamentado, para interromper a tendência à centralização e dominação por grandes empresas. As grandes empresas de comunicação ainda recebem a maior fatia de verbas publicitárias – governamentais e do mercado. Não se pode ignorar que há uma grande diferença entre um portal bem financiado por polpudas receitas publicitárias e os muitos blogs que contam com a disponibilidade do tempo livre para produção das informações.

E, por fim, há que se considerar, ainda, a particularidade da organização da radiodifusão, que é concessão pública e, como tal, deve ser tratada, regulamentada por regras republicanas e participativas. E, neste caso, obsoleta é a legislação do setor, datada de 1962 e fruto do lobby do setor empresarial de rádio e TV. Uma legislação atrasada do ponto de vista tecnológico e político, que precisa ser reformulada para atender às demandas de um novo tempo.

A defesa da liberdade de expressão não comporta soluções simplificadoras. A concentração de propriedade é fonte de dominação e tem de ser combatida em qualquer tempo. Há que se estranhar o argumento da tecnologia com DNA democrático. Na fachada, se apresenta como um convite a uma festa popular. Mas pode ser só pretexto para que nos acostumemos com as migalhas, tomando-as pelo banquete. 

*Ana Paola Amorim é professora do curso de jornalismo da Universidade FUMEC, doutora em Ciência Política pela UFMG e pesquisadora do Grupo de Pesquisa Cerbras (Centro de Estudos Republicanos Brasileiros), sediado no Departamento de Ciência Política da UFMG. É co-autora com Juarez Guimarães de A Corrupção da Opinião Pública – Uma defesa republicana da liberdade de expressão (Boitempo, 2013)

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