Cantor assassinado pelo golpe militar de 1973 vive na memória dos chilenos


Numerosas organizações sociais começam hoje três dias de homenagens maciças ao emblemático cantor chileno Víctor Jara, assassinado durante o golpe militar de 1973. A recordação inclui atuações de artistas como o grupo Inti-Illimani e culminará no sábado com uma romaria ao Cemitério Geral, onde serão enterrados os restos de Jara, após serem exumados em junho passado para submeter-se a perícias por parte do Serviço Médico Legal (SML).


Victor Jara mais vivo que nunca


Por Lucía Sepúlveda Ruiz*

Como uma verdadeira festa da memória e da vida pode se descrever o funeral de Víctor Jara realizado em Santiago de Chile no sábado 5 de dezembro. "Víctor, estás mais vivo que nunca" gritou alguém expressando o sentimento da multidão no inicio do colorido e multitudinário cortejo, que em seu recorrido pela capital fez florescer Santiago com canções e bailes. O cantor regressou nessa tarde ao ninho em que foi enterrado solitário faz 36 anos por sua viúva, Joan Jara, em seguida a seu assassinato por militares que permanecem na impunidade.

Mas dessa vez entrou rodeado pelo amor de seu povo, que proclamou seu direito a viver em paz e demanda agora justiça para o crime. É o que reconheceu Joan Jara ao expressar em sua despedida: "Após sua horrorosa morte se congelou o tempo e nossa memória guardou para sempre intactos as recordações de uma vida compartilhada abraçadas por seu carinho, ternura e alegria de viver. Suas canções nos ajudaram a suportar sua ausência, hoje seu corpo destroçado pela tortura e o metal voltará à terra envolto no amor de suas filhas e de sua mulher, e no enorme amor de seu povo".

À cabeça da marcha esteve a Juventude Comunista, protagonista de uma jornada na qual grande parte dos presentes eram também jovens que junto com os mais velhos cantavam em coro cada uma das canções de Víctor durante as quatro horas que durou o percurso desde a Praça Brasil, onde se encontra o Galpão Víctor Jara, até o Cemitério Geral. Não houve deslocamento de força policial nem provocação alguma de parte de carabineiros, outro fato inusitado que permitiu que as famílias com bebês e crianças pequenas pudessem continuar o trajeto sem problemas, o que não ocorre no Chile em nenhuma outra manifestação de rua nem muito menos nas marchas de comemoração do 11 de setembro, nas quais o gás lacrimogêneo termina sempre afogando os manifestantes.

Emoção pura

Nessa tarde, as lágrimas não eram por causa do gás. Era emoção pura, nascida de escutar, por exemplo "Yo no canto por cantar", o hino de Víctor entoado por milhares de vozes (uma estimativa fala de 12.000 participantes e carabineiros de 6.000) em marcha cruzando a ponte do rio Mapocho atrás da carroça carregada de flores, ou de ver a estrela branca gigante e as cores da bandeira chilena levadas por dezenas de jovens com os corpos pintados por inteiro de vermelho, branco ou azul. Houve artistas conhecidos e desconhecidos, grupos musicais famosos e conjuntos de favela. Muitos artistas de violão em punho cantavam no meio da marcha.

Nas esquinas do centro se aglomeravam transeuntes para ver passar esse funeral com cuecas, murgas, dançarinos de diabradas nortistas vestidos inteiramente de vermelho, dançando ao som de uma banda que tocava "Plegaria a un labrador", enquanto mais atrás outros manifestantes cantavam A Internacional como despedida a Víctor Jara, o que ressoava como um canhão, pois cada grupo a entoava num ritmo diferente.

Viram-se há 8 dias das eleições presidenciais e parlamentares - cartazes apoiando a candidatura a deputado de Guillermo Teillier, Presidente do Partido Comunista que ia no cortejo junto com o candidato presidencial de Juntos Podemos Jorge Arrate. Eles traziam para o presente eleitoral a rua povoada de história, mas também tiveram que escutar consignas pedindo para anular o voto, e fez-se presente uma columa do Movimento dos Trabalhadores e do Povo (MPT). Gritos pela liberdade dos presos políticos mapuches e lenços pedindo o fim da lei antiterrorista, desfraldando bandeiras mapuches ou da wiphala andina também se fizeram ouvir.

Organizações como as dos ciclistas, ou Os de Baixo (a barra brava do clube esportivo da Universidade do Chile), e o Comitê bolivariano de Solidariedade com a Venezuela se misturavam em colunas variadas com as agrupações de ex-presos políticos, de familiares de detidos desaparecidos e de executados; a brigada Ramona Parra, organizações da cultura, e muitas outras entidades sociais e políticas.

Enterro camponês

Três dias durou o funeral e em cada hora desfilaram pelo galpão da Praça Brasil centenas e centenas de pessoas a render sua homenagem a Víctor Jara, franqueado por uma guarda de honra que se ia relevando permanentemente para permitir às organizações expressar sua solidariedade ativa. Numa experiência inédita para a comunicação popular, o Señal 3 de TV da favela La Victoria transmitiu ao vivo o velório e o funeral, junto com ol incipiente canal comunitário que se está formando na Fundação Víctor Jara (http://fundacionvictorjara.cl/) com seu apoio.

As pericias feitas em julho desse ano pelo juiz Juan Eduardo Fuentes determinaram que ele foi assassinado com 44 impactos de balas no crânio, tórax, abdome, pernas e braços, depois de ser torturado. Os resultados foram conhecidos pela família só em novembro. Comunicadores próximos à Fundação me contaram que quando Joan Jara recebeu os restos do artista revelou que ela e Víctor tinham o compromisso de que se qualquer dos dois morria antes, teria um funeral como se faz no campo, onde duram três dias, e que seria muito alegre, com música e danças. À cabeça da fundação que leva o nome de Víctor Jara, Joan decidiu cumprir a promessa e brindar a seu companheiro a homenagem que merecia, para mostrar que Víctor na verdade está vivo. Y para mostrar que todos ainda, estamos vivos.

*Lucía Sepúlveda Ruiz é jornalista chilena
Fonte: Rebelión
Veja o vídeo manifesto em memória a Victor Jara: Yo no canto por cantar

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