Primeiro de abril de 1964: há 52 anos o nefasto golpe ocorreu
A Ditadura e o militarismo acabaram no Brasil? Marcha do Fórum Social Mundial, Belém, 2009 Foto de Brenda Marques |
Por Dava Silveira
Considero este texto oportuno, pois pode nos ajudar a refletir sobre a situação atual:
Primeiro de abril de 1964, pena que não foi uma mentira: há 52 anos, o nefasto golpe ocorreu e, então, os militares assumiram o poder. A “Coleção A Ditadura Militar no Brasil”, no último volume, apresenta um resumo das atrocidades cometidas pelo regime militar:
Os golpistas destruíram a experiência educacional transformadora pré-64, aceleraram a privatização do ensino, criaram “fábricas de diplomas” para formar a intelectualidade neoliberal; em vez de reforma agrária, de produção de alimentos com proteção ambiental, concentraram mais terras em menos mãos e passamos a conviver com latifúndios improdutivos ou do agronegócio exportador e predador do meio ambiente. Endividaram o país com obras faraônicas, contribuíram para o saque à Amazônia; aceleraram a deteriorização cultural do povo, em dobradinhas com empresários antinacionais, promotoras da “baixaria televisiva” e da alienação (Caros Amigos, n. 12, 2007, p. 354).
E as consequências, em longo prazo, da política desse governo:
Acabada a ditadura, as elites avançaram sobre os direitos dos trabalhadores, puseram milhões na informalidade e aprofundaram o fosso entre a minoria rica e a extensa maioria pobre ou miserável. O último “general de plantão” nos legará um país cheio de problemas quando deixar o poder. Violência, desagregação, individualismo, consumismo, o levar vantagem a todo preço, mediocridade generalizada – muitos anos de democracia precisam ainda rolar até nos livrarmos dessas heranças malditas (Caros Amigos, n. 12, 2007, p. 354).
Manifestantes que foram às ruas em 18 de março voltam a protestar "contra o golpe" nesta quita-feira (31).
Saiba quais as semelhanças entre o golpe de 1964 e a crise política atual
Neste ano, o aniversário do golpe militar de 1964 acontece em circunstâncias de extrema tensão no Brasil. A data, 31 de março, vai ser usada para movimentos sociais e partidos de esquerda irem às ruas contra o que consideram a ameaça de um novo golpe no país. A RFI Brasil consultou especialistas para verificar quais as semelhanças e diferenças entre 1964 e 2016.
O ponto em que a divergência é mais flagrante é o papel das Forças Armadas. Ao contrário de 1964, em que o comando militar capitaneou a queda do governo, desta vez, existe um consenso de que os militares não representam um risco à democracia e se abstêm de participar do desfecho da crise política no país. A consequência é que os direitos civis, aliberdade de imprensa e de opinião não estão ameaçados, como há 52 anos.
Neste período, apontam o historiador Marcos Napolitano, professor da USP, e o cientista político Francisco Fonseca, da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), a democracia brasileira se consolidou, e a ocorrência de um golpe de Estado se tornou muito improvável – embora a cultura política no Brasil ainda seja frágil e, muitas vezes, superficial.
Crise econômica era muito mais grave
Nos anos 1960, também houve um bloqueio político do governo pelos conservadores, que, somado aos erros do presidente João Goulart na condução da política econômica, levaram o país a uma crise econômica muito mais grave do que a atual: a inflação chegou a 90% no ano do golpe militar. O clima de incertezas, portanto, era incomparável ao atual.
“O ambiente era muito mais explosivo, e o contexto da Guerra Fria não pode ser menosprezado. Existe um conservadorismo muito grande no Brasil, que, na época, era agravado pela Guerra Fria”, observa Napolitano, autor de “1964: História do regime militar brasileiro”. Naquele ano, explica, o governo Goulart tinha uma agenda reformista: previa reforma agrária, bancária e fiscal, que apontavam para uma distribuição de renda mais eficaz no país. Dois projetos de Brasil se confrontavam de uma maneira nítida, ao contrário de hoje.
Fonseca ressalta que o país era quase rural na década de 1960, e a expansão da urbanização nas últimas décadas fizeram emergir uma sociedade mais educada e bem informada. “Temos uma sociedade muito mais mobilizada hoje”, constata.
Classe média protagonista
Os dois pesquisadores, porém, apontam diversas semelhanças entre o contexto político e social de 1964 e o atual. Ambos os governos em questão possuem uma agenda de esquerda, e o perfil da insatisfação popular é bastante parecido. Hoje, é majoritariamente a classe média brasileira quem se revolta contra o governo, com o apoio de entidades patronais, empresários e determinadas categorias profissionais, como médicos e advogados - exatamente como há 52 anos.
“A classe média nunca foi de ir para a rua e está indo agora – como em 1964. De certa forma, os pais que se mobilizaram em 1964 estão vendo os seus filhos irem para a rua agora”, afirma Fonseca.
Discurso antipolítico pode ser perigoso
A história se repete com os partidos que romperam com o Planalto – a ala de cunho conservador e liberal alavanca a movimentação pelo fim antecipado do presidente da República. O PMDB, criado para fazer oposição à ditadura sob a sigla MDB, é um partido-chave nos dois momentos.
“Há um discurso antigovernista e contra a esquerda, de natureza salvacionista, ou seja, de promover a entrada de um agente externo à política e aos conflitos para salvar a República. Em 1964, era salvacionismo militar, com o discurso de que o governo e, em especial, a esquerda era a responsável por todas as mazelas”, explica Napolitano. “Vemos isso nas ruas hoje, porém de uma maneira talvez mais frágil e desarticulada do que em 1964. Isso é muito preocupante, porque significa desqualificar toda uma corrente de opinião da sociedade.”
Fonseca também vê com preocupação a emergência do discurso antipolítico e observa que a própria política está sendo usada para reforçar a ideia de que o sistema está falido. “Tal como em 1964, os políticos não prestam, então ‘chamem os militares’. Agora, até a oposição golpista foi expulsa das manifestações da direita. E quem são os salvadores da pátria? O juiz, ou os políticos que adotam uma posição de outsiders, como o Jair Bolsonaro.”
Para o historiador, as correntes liberais brasileiras continuam a ter “muita dificuldade” de aceitar os resultados eleitorais que lhes sejam desfavoráveis. “Se voltamos no tempo, é muito semelhante com a crise de 1954, que culminou com o suicídio de Getúlio. Também ocorreu, em alguns aspectos, no golpe contra João Goulart e no quase golpe a Juscelino Kubitschek”, relembra.
Mídia golpista?
Outra semelhança, ressaltam os especialistas, é a postura da imprensa. Fonseca aponta os grandes jornais e televisões como atores do movimento pela saída da presidente Dilma Rousseff – assim como estiveram ao lado dos golpistas de 1964, na sua opinião.
“A diferença é que os militares não estão politizados como antigamente e não são uma força ativa. Hoje, os militares foram substituídos por setores do poder Judiciário – a figura do Sérgio Moro, setores do Ministério Público Federal e da Polícia Federal – e da grande mídia fazem o papel mais vigoroso que foi dos militares em 1964”, avalia o cientista político da FGV.
Napolitano concorda que a imprensa deve investigar e denunciar irregularidades, mas considera que os jornais estão extrapolando a sua função e, em muitas ocasiões desde o início da atual crise, se tornaram partidários. “Existe um uso do impeachment, que é um instrumento legítimo, constitucional, juridicamente definido e que já foi utilizado no passado, para tirar um governo eleito. Para isso, é preciso ter um crime comprovado, mas as investigações ainda não se esgotaram. A imprensa conservadora condenou o governo muito antes da justiça”, afirma o historiador.
1964 começou com golpe institucional
Napolitano qualifica a movimentação pela saída do PT do governo como a possibilidade de um “golpe institucional”, com a colaboração de parlamentares e uma parcela do Judiciário e da Polícia Federal. “Não podemos esquecer que 1964 começou com um golpe institucional. Houve a rebelião militar em 31 de março e um golpe institucional no Congresso, que declarou vaga a presidência da República”, relembra. Os militares então tomam a dianteira, chancelados pelo Congresso, que elegeu o general Castelo Branco presidente.
O historiador ressalta que, se o Brasil tivesse um regime parlamentar, o impasse político já teria se resolvido há muito tempo – o governo teria caído por falta de apoio e novas eleições gerais seriam convocadas. Sob o presidencialismo, a crise do governo se tornou uma crise institucional.
Polarização prejudica futuro político do país
Se o impeachment de Dilma de fato se consumar, as eleições só devem ocorrer em 2018, em um ambiente de divisão profunda da sociedade. “O que eu acho preocupante é que uma corrente ideológica inteira, a esquerda, está sendo desqualificada, e com análises muito rasas, como se fosse um jogo de futebol. O ambiente está envenenado para eleições tranquilas”, frisa Napolitano, para quem a sociedade brasileira precisa amadurecer politicamente. “Isso é um problema porque pode conduzir a uma volta do autoritarismo, com o apoio de setores da sociedade.”
Fonseca vai além: o pesquisador acha que as divisões tomam contornos de violência e colocam em xeque a transição do poder, se ocorrer. Para ele, não restam dúvidas de que o governo do PT é alvo de um golpe.
“Se as instituições não agirem de acordo com a lei e consumarem o golpe, a democracia brasileira não existe e estaremos muito próximos do que aconteceu no Paraguai. O Brasil vai entrar em uma conflagração social, uma guerra civil, e isso vai ter de ser colocado na conta desses atores golpistas, que estão sendo inteiramente irresponsáveis”, afirma o professor da FGV.
Fonte: RFI - http://br.rfi.fr/brasil
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