Às nossas meninas e meninos de todo dia

Por Geraldo Maia*

Choca de sobremaneira a tragédia que vitimou tantas meninas e meninos em Realengo, Rio de Janeiro, sete de abril passado. O impacto na mídia repercutiu pelo mundo inteiro. Todos nós nos vimos de repente no lugar daquelas mães e pais desesperados por saber notícias sobre suas crianças inocentes feridas por um “tsunami” inusitado de ódio, violência e terror sem a mínima chance de defesa num local que supostamente deveria protegê-las e amá-las enquanto durasse o devido processo de aprendizado.

Foram doze vítimas fatais e doze feridas, várias em estado grave. Com o suicido do autor busca-se agora desvendar os motivos que o levaram a tal tresloucado ato. A mente humana é um emaranhado de possibilidades, enganos, mentiras e dissimulações. A mente mente. È uma realidade que nem sempre temos coragem ou queremos admitir. A mente mente, tergiversa, ilude, trai, erra e leva ao erro, é um lodaçal profundo e ainda só vinte por cento muito mal explorado.

Uma das provas que a mente mente está no fato de que nos consternamos com a morte súbita de doze crianças e outro tanto de feridos, mas nos calamos, somos coniventes, cúmplices e apoiadores das centenas de milhares de crianças inocentes e indefesas que são abatidas, feridas, violentadas, assediadas, exploradas, prostituídas, estupradas, animalizadas, brutalizadas, traumatizadas, humilhadas, ofendidas, espancadas, abandonadas, assassinadas, silenciadas por pais/mães, padrastos, madrastas, tios, primos, vizinhos, amigos.

E toda essa sujeira, toda essa imundície, todo esse horror cotidiano e jogado debaixo do tapete e ninguém diz nada contra, e muito a favor, a mídia não repercute porque não causa impacto, e toda essa monstruosidade passa a ser vista como “normal”, “natural”, “cultural”, e que deve ser assim mantida para não criar problemas com relação à ”estabilidade” da família, da tradição e da propriedade.

O estatuto da Criança e do Adolescente, esse ilustre desconhecido de vinte anos vem tentando contra tudo e contra todos os promotores dessas tragédias “invisíveis” diárias que infestam a grande maioria dos lares em nosso país e no planeta lutar para garantir um mínimo de proteção às nossas crianças e adolescentes.

Todos os dias o ECA é atacado de alguma maneira no sentido de desqualificá-lo, minimizar seus efeitos, protelar e impedir seu limitado raio de ação, mas ainda a única ferramenta política e jurídica que os nossos jovens possuem para que um mínimo de defesa e justiça sejam praticados a seu favor, já que quem deveria fazê-lo promove o terror, o ódio, a violência, a crueldade sobre o manto da hipocrisia, da covardia e da impunidade.

O autor da tragédia é mais uma vítima dessa realidade todo dia praticada e muito pouco evidenciada. É preciso que o tumor exploda espalhando o seu conteúdo nas páginas e vídeos para que pais e responsáveis descubram de repente que suas crianças existem, precisam de muito mais amor e proteção, e que a violência momentânea significa a culminância de um processo doentio que se alastra bem no lodaçal do seio de insuspeitas famílias.

O alvo preferencial foi de meninas. Estranho? Como? Se educamos nossos filhos (e filhas) a não respeitar, a desvalorizar, a agredir e violentar as mulheres? Em todos os lares as mulheres sofrem algum tipo de agressão a cada segundo. Mesmo sob a força da Lei Maria da Penha a matança de mulheres segue solta e indiscriminada. E não é só a morte física, mas é a humilhação, o estupro, o assédio moral, sexual, a prostituição de mulheres desde a infância, a cada momento a mulher é agredida e coisificada numa capa de revista, de jornal, num comercial, num programa de TV ou num filme bacanal. Precisa explicar mais?

Todo dia entro num ônibus e assisto uma mãe gritar com sua filha, xingar a menina, bater, maltratar, torturar, e quando meto bedelho (meto mesmo) o argumento é o mesmo: “não se meta, meu senhor, é minha filha, faço o que quero com ela e ninguém tem nada a ver com isso”. Replico que não é bem assim, que a criança é de responsabilidade de todos, não só dos pais, que toda criança é filha e filho solidário de cada um de nós, que se vejo uma criança indo para o perigo é minha obrigação intervir e tentar salvá-la, mesmo que o perigo seja o pai ou a mãe dela. Ainda não queremos entender essa óbvia realidade. E isso com relação a todo tipo de perigo que os pais venham a representar para suas filhas e filhos.

Outra coisa. Criança não é para trabalhar, mas para dar trabalho mesmo. Criança não atrapalha, espalha alegria e felicidade. Criança precisa de limite e não de dinamite. Criança precisa de casa e não CASA (opressão). Criança precisa de amor porque da amor demais, só é preciso retribuir um pouco. Criança precisa de carinho e proteção pelo mesmo motivo. E é preciso aprender com as crianças sobre como construir um mundo novo através das novas informações que elas trazem para cada um de nós no planeta.

Educar crianças é aprender com as mesmas sobre as nossas ignorâncias. E sobretudo lidar com crianças é um processo contínuo de oração, de diálogo íntimo com Deus, porque se delas é o Reino dos Céus, o que temos para oferecê-las além desse reino carcomido, degenerado, corrupto, imundo, perverso, indigno, abjeto que fazemos questão de carregar dentro e fora de nós, todos os dias?

* Geraldo Maia é pai, poeta, escritor

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